domingo, 17 de junho de 2012

Por que Emílio não é o cidadão republicano IV


Fabrício, agradeço pelos novos comentários e questionamentos (Nota 1)
Algo que precisa ser compreendido logo de início é que, nas minhas postagens anteriores, quando eu diferencio as características de dois tipos de moralidade, ou seja, a apropriada aos cidadãos republicanos e a que cabe ao homem em geral, não estou concebendo o segundo tipo como se fosse o equivalente da capacidade básica e genérica que todos os seres humanos têm de desenvolver qualidades morais, uma capacidade que, nas obras de Rousseau, decorre da consciência, da razão e do amor de si (nota 2). Nesse sentido, os dois tipos de moralidade em questão são modalidades distintas que se constituem a partir dessa mesma base, mas de acordo com maneiras díspares de socialização. Num caso, temos as pessoas cuja consciência e cujas paixões foram modeladas pela educação cívica republicana, e no noutro temos um indivíduo (Emílio) cuja consciência e cujas paixões foram formadas para que ele pudesse estender seu "eu humano" sobre toda a humanidade (Nota 3).
Pois bem, você propõe que seria correto "afirmar que a moralidade do homem em geral fundamenta-se no solo metafísico, enquanto a do homem civil no jurídico; uma é natural e a outra artificial"; entretanto, eu não vejo que tais distinções funcionem exatamente desse modo. Ainda que se possa dizer que a moralidade tenha uma base natural na consciência inata – o "instinto divino" mencionado por Rousseau –, ela só se desenvolve, tanto em alguém como Emílio quanto no cidadão de uma dada república, por meio do convívio com os outros. Nas palavras de Michel Launay, "a voz imortal e celeste da consciência só toca as ouvidos e o coração do homem por intermédio de seu meio concreto, físico, político, social e cultural. A voz imortal e celeste que dorme no homem desde o estado de natureza (...) só desperta se o estado social permite-lhe adquirir forma e delicadeza” (Nota 4). Portanto, a gênese da moralidade sempre precisará não apenas daquilo que é natural, mas também dos estímulos oriundos da vida que se tem dentro de uma comunidade humana, isto é, de uma existência que é artificialmente construída pelas pessoas. No caso particular do cidadão republicano, sua consciência será informada por elementos que vão além do aspecto puramente jurídico, pois eles incluem a opinião pública, os valores morais e os costumes próprios de sua pátria, como eu já havia salientado em minhas outras postagens.
Isso torna problemática sua interpretação de que "no homem em geral a determinação das ações humanas são de ordem interior, a moralidade ali constituída é fruto da conjugação da razão com a consciência, enquanto que no homem civil se determina por uma ordem exterior, oriunda da vontade geral". Ora, em ambas as situações a moralidade é proveniente de componentes internos e externos, pois a consciência e a razão que existem no íntimo de cada ser humano necessitam de um contexto social para atingirem seu papel de guia. Nos Estados republicanos, esse contexto é fornecido pelas leis emanadas da vontade geral, bem como pelos bons costumes nutridos pelo povo, cujos ditames são incorporados pelos cidadãos. Nos Estados corrompidos, como vemos no Emílio, é mais difícil ser virtuoso, embora não impossível, desde que se consiga aprender a discernir entre o bem e o mal em meio aos "simulacros de leis", ao predomínio dos interesses particulares, ao exercício da violência pública e às instituições iníquas. Emílio é bem sucedido em alcançar esse objetivo graças ao trabalho constante realizado pelo preceptor para mediar os contatos do jovem com o mundo social.
 Tendo em vista esses pontos, o que eu posso dizer em relação às questões que você levantou é o seguinte. A moralidade adquirida por Emílio não é a referência (escala) para avaliar a correção da moralidade dos cidadãos das várias repúblicas, pois elas levam a resultados que são desiguais. Esta tende a unir indissoluvelmente as pessoas a uma dada coletividade política, ao passo que aquela tende situar o indivíduo no plano muito mais abrangente da humanidade. Logo, não faz sentido esperar que ambas possam coexistir harmonicamente nos mesmos sujeitos. Na primeira das Cartas escritas da montanha, Rousseau afirma que o patriotismo e a humanidade são "virtudes incompatíveis em sua energia, e sobretudo em um povo inteiro. O Legislador que visar as duas não atingirá nem uma nem a outra; esse acordo jamais foi visto e nunca se verá, porque ele é contrário à natureza e porque não se pode dar dois objetos à mesma paixão" (Nota 5). Consequentemente, o que causa a degeneração moral dos homens é uma socialização mal conduzida que nem os prepara para serem bons cidadãos de um Estado livre, nem homens virtuosos tais como Emílio, os quais conseguiriam manter sua liberdade moral em qualquer situação em que vivessem.
Finalmente, em função de toda a argumentação que venho apresentando desde a primeira postagem, reitero meu entendimento de que Emílio não foi formado para ser o cidadão republicano.

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Notas
1) Para acessá-los, basta clicar no link Comentários abaixo da postagem intitulada "Por que Emílio não é o cidadão republicano III".
2) Se buscássemos apoio no Segundo Discurso, poderíamos acrescentar também a piedade como uma paixão independente do amor de si; no Emílio, por outro lado, lemos que o amor de si é a fonte de todas as outras paixões, o que inclui a piedade.
2) Como o próprio Emílio diz em uma carta endereçada a seu antigo preceptor em Emílio e Sofia ou Os solitários. Ver ROUSSEAU. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 1980. v. 4, p. 883.
4) Launay, Michel. Rousseau. Paris: Presses Universitaires de France, 1968, p. 21. A esse respeito, ver também Maruyama, natalia. A contradição entre o homem e o cidadão. São Paulo: Humanitas; Fapesp, 2001, p. 113.
5) ROUSSEAU. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2003. v. 3, p. 706.


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