A partir da série de postagens e
comentários feitos no fórum em torno do tema "Por que Emílio não é o
cidadão republicano", preparei um texto que foi apresentado na PUC-SP e na
Unifesp (campus de Guarulhos) em
eventos realizados no mês de setembro, e que foi publicado pouco depois na
edição n° 8 da revista Argumentos do
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará. O
artigo pode ser acessado no endereço: http://www.filosofia.ufc.br/argumentos
Há alguns dias, recebi os seguintes
comentários encaminhados por André Queiroz de Lucena, mestrando em filosofia na
Unifesp:
Sobre o Emílio, trarei uma constatação que sempre tive e pareceu reforçada
nas palavras tuas, dadas na Unifesp e, depois, no artigo enviado.
Na verdade, quero sintetizá-las em uma
citação do artigo: a formação do Emílio é endereçada a "um mundo profundamente insatisfatório, e consiste majoritariamente em aprender sobre ele somente para evitá-lo na medida do possível. Se Emílio não é um eremita, ele está longe de ser um cidadão" (PARRY, 2001, p. 260). (p. 142 do artigo)
Não nos
parece, portanto, que no Emílio temos
implícito um forte pessimismo sobre o mundo? Emílio é o autêntico e livre que
vive em uma sociedade de simulacros e escravos. É curioso que temos, assim, um cidadão
e homem bem singular: que quanto mais é instruído e livre, mais se torna
alheio, solitário. Não deixo ainda de pensar isto sem recordar aquela divisa
rousseauísta do 1º Discurso "Sou
bárbaro nesta terra..." e, sobretudo, todo o percurso biográfico de
Rousseau.
Isto admitido, a educação em Rousseau
tem um caráter muito perturbador, pois trabalha conscientemente para
despertar a ideia do educando cindido do jogo social. E se a sociedade
corrompida não se emenda e é preciso trabalhar o indivíduo, seria o cultivo
deste pessimismo o objetivo da obra?
Se realmente for assim, veria aqui um
"escândalo" maior do que a profissão de fé do vigário, pois não
estamos educando cidadãos, mas "bárbaros" livres e inadequados à
trama social. Que cidadão do século XVIII e dos nossos tempos quer isto para
seu filho bem nascido? O choque que a leitura do texto causa é, então, real. E
a proposta de Rousseau tão ousada quanto original.
Eis minha resposta:
Obrigado pelos comentários, André.
Em relação ao que você diz, concordo que
seria possível fazer uma interpretação pessimista do Emílio, principalmente se levarmos em conta os tristes eventos
narrados na continuação inacabada do livro.
Ao longo de mais de vinte anos, o
preceptor realiza um esforço admirável para preparar Emílio a fim de que ele
seja capaz de se inserir em um mundo habitado por pessoas que, em diversos
aspectos, são bem diferentes dele. Como você ressaltou, o resultado dessa
educação é um homem autêntico e moralmente livre que precisa lidar com uma
sociedade de simulacros e de sujeitos escravizados não somente do ponto de
vista político, mas também porque passam toda a vida submetidos aos vícios da
civilização, sendo arrastados pelo infindável cabo de guerra entre suas
inclinações e seus deveres. Nesse contexto, alguém como Emílio teria
dificuldades para encontrar pessoas com as quais pudesse se identificar, ou
seja, que compartilhassem de seu tipo de sensibilidade e de compreensão
intelectual e moral das coisas. Entretanto, ele não foi criado para viver
sozinho. Por isso, a família que Emílio forma com Sofia é tão importante, pois
nela o jovem encontraria a oportunidade de constituir um ambiente de relações
humanas baseado nos princípios dentro dos quais ele foi educado. Sem dúvida,
esse núcleo familiar foi posto duramente à prova por Rousseau na sequência da
obra, tendo sofrido uma série de adversidades, a tal ponto que o protagonista preferiu
abandoná-lo para se afastar das causas de sua infelicidade. Disso tudo seria viável
retirar argumentos para uma leitura pessimista.
Por outro lado, acredito que a própria
figura de Emílio nos dá fundamentos para outra linha de compreensão. Ainda que
nem todas as expectativas geradas em torno de seus relacionamentos tenham se
concretizado na narrativa deixada por Rousseau, o protagonista permanece como
um exemplo de força moral, o que atesta o poder de sua educação. Ainda que os acontecimentos
funestos ocorridos em sua família o tenham perturbado, ele logo conseguiu se recuperar
e não se deixou abater novamente nem mesmo quando se viu submetido à escravidão.
Até nessa condição que seria profundamente degradante para a grande maioria das
pessoas, o comportamento virtuoso de Emílio fez com que ele se sobressaísse por
qualidades como a coragem, a sinceridade e a sensatez, permitindo-lhe alterar
sua situação e ajudar os que estavam sendo maltratados junto com ele.
Então, parece-me que a mensagem do Emílio não é unicamente de pessimismo
frente a uma realidade social marcada por graves problemas muito difíceis de
serem solucionados. Ela também aponta para uma via de leitura na qual a
preservação da dignidade humana, em meio aos contínuos desafios que cada um
encontra ao longo da vida, revela-se um valor de suma importância, algo que pode
conferir um sentido crucial à existência. Ao atentarmos para isso, vemos
Rousseau nos ensinando que conquanto as práticas e as instituições injustas presentes
nos Estados modernos não possam ser transformadas em prol da liberdade política,
tal como ele a concebia, o ser humano continua capaz de se tornar moralmente
livre; essa seria uma conquista que, uma vez alcançada, nada nem ninguém poderia
destruir. Portanto, trata-se de uma mensagem muito instigante baseada na crença
no potencial do homem para elevar a si próprio, apesar de todos os riscos e
obstáculos a serem vencidos durante o percurso.
A possibilidade de se extrair mensagens
distintas do Emílio e das outras
obras rousseaunianas demonstra, como Allan Bloom salientou, que seu autor soube
captar bem a complexidade dos fenômenos humanos e o caráter problemático de
quaisquer soluções oferecidas para as divisões que os atravessam. Diante de um
mundo profundamente insatisfatório, Rousseau buscou imaginar caminhos que conduziriam
a rumos diferentes daqueles seguidos pelas pessoas de seu tempo. Em
determinados momentos, essa procura o levou a teorizar sobre uma comunidade
política republicana habitada por cidadãos livres. Noutros, ele se dedicou às
reflexões idiossincráticas de quem já se via completamente à margem do convívio
social. No caso de Emílio, Bloom sugere, talvez tenhamos um meio termo, pois ele
"está em algum lugar entre o cidadão do Contrato Social e o solitário dos Devaneios, faltando-lhe algo de cada um" (BLOOM, 1979, p. 28).
Então, valeria a pena educar alguém como ele, que seria, de certo modo, um
estranho entre seus pares? Se a resposta for negativa, quais opções restariam? Para
Rousseau, a mais óbvia de todas era também a mais corriqueira, a saber, aquela
que ele dizia servir para formar "homens de nosso século", ou seja, pessoas
dotadas das qualidades típicas de uma época decadente e que não eram boas nem
para si nem para outrem. Contudo, educar um indivíduo para não estar em
contradição consigo mesmo, cujas ações fossem sempre coerentes com suas
palavras, cujas convicções não desmoronassem frente aos inevitáveis percalços
da vida, é um trabalho que requer as condições apropriadas e, igualmente, a
tomada de uma decisão muito séria por parte dos pais. No prefácio do Emílio, o autor deixou clara sua opinião
de que não adiantava tentar remediar a péssima pedagogia vigente com algumas medidas
paliativas, já que o bem destas se esgotaria e o mal daquela não se curaria.
Acerca da dúvida sobre a aplicabilidade de suas ideias, ele fez uma constatação
que enfatiza o papel decisivo da família na educação dos jovens, lembrando algo
que continua sendo pertinente para nosso próprio tempo: "Pais e mães, o
que é realizável é o que vós desejais fazer. Devo eu ser responsável por vossa
vontade?"
Renato Moscateli
Bibliografia
citada
BLOOM, Allan. Introduction.
In: ROUSSEAU, J.-J. Emile or On Education.
Trad. Allan Bloom. Nova York: Basic Books, 1979.
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