sábado, 27 de outubro de 2012

Por que Emílio não é o cidadão republicano V



A partir da série de postagens e comentários feitos no fórum em torno do tema "Por que Emílio não é o cidadão republicano", preparei um texto que foi apresentado na PUC-SP e na Unifesp (campus de Guarulhos) em eventos realizados no mês de setembro, e que foi publicado pouco depois na edição n° 8 da revista Argumentos do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará. O artigo pode ser acessado no endereço: http://www.filosofia.ufc.br/argumentos
Há alguns dias, recebi os seguintes comentários encaminhados por André Queiroz de Lucena, mestrando em filosofia na Unifesp:

Sobre o Emílio, trarei uma constatação que sempre tive e pareceu reforçada nas palavras tuas, dadas na Unifesp e, depois, no artigo enviado.
Na verdade, quero sintetizá-las em uma citação do artigo: a formação do Emílio é endereçada a "um mundo profundamente insatisfatório, e consiste majoritariamente em aprender sobre ele somente para evitá-lo na medida do possível. Se Emílio não é um eremita, ele está longe de ser um cidadão" (PARRY, 2001, p. 260). (p. 142 do artigo)
Não nos parece, portanto, que no Emílio temos implícito um forte pessimismo sobre o mundo? Emílio é o autêntico e livre que vive em uma sociedade de simulacros e escravos. É curioso que temos, assim, um cidadão e homem bem singular: que quanto mais é instruído e livre, mais se torna alheio, solitário. Não deixo ainda de pensar isto sem recordar aquela divisa rousseauísta do 1º Discurso "Sou bárbaro nesta terra..." e, sobretudo, todo o percurso biográfico de Rousseau.
Isto admitido, a educação em Rousseau tem um caráter muito perturbador, pois trabalha conscientemente para despertar a ideia do educando cindido do jogo social. E se a sociedade corrompida não se emenda e é preciso trabalhar o indivíduo, seria o cultivo deste pessimismo o objetivo da obra?
Se realmente for assim, veria aqui um "escândalo" maior do que a profissão de fé do vigário, pois não estamos educando cidadãos, mas "bárbaros" livres e inadequados à trama social. Que cidadão do século XVIII e dos nossos tempos quer isto para seu filho bem nascido? O choque que a leitura do texto causa é, então, real. E a proposta de Rousseau tão ousada quanto original.

Eis minha resposta:
Obrigado pelos comentários, André.
Em relação ao que você diz, concordo que seria possível fazer uma interpretação pessimista do Emílio, principalmente se levarmos em conta os tristes eventos narrados na continuação inacabada do livro.
Ao longo de mais de vinte anos, o preceptor realiza um esforço admirável para preparar Emílio a fim de que ele seja capaz de se inserir em um mundo habitado por pessoas que, em diversos aspectos, são bem diferentes dele. Como você ressaltou, o resultado dessa educação é um homem autêntico e moralmente livre que precisa lidar com uma sociedade de simulacros e de sujeitos escravizados não somente do ponto de vista político, mas também porque passam toda a vida submetidos aos vícios da civilização, sendo arrastados pelo infindável cabo de guerra entre suas inclinações e seus deveres. Nesse contexto, alguém como Emílio teria dificuldades para encontrar pessoas com as quais pudesse se identificar, ou seja, que compartilhassem de seu tipo de sensibilidade e de compreensão intelectual e moral das coisas. Entretanto, ele não foi criado para viver sozinho. Por isso, a família que Emílio forma com Sofia é tão importante, pois nela o jovem encontraria a oportunidade de constituir um ambiente de relações humanas baseado nos princípios dentro dos quais ele foi educado. Sem dúvida, esse núcleo familiar foi posto duramente à prova por Rousseau na sequência da obra, tendo sofrido uma série de adversidades, a tal ponto que o protagonista preferiu abandoná-lo para se afastar das causas de sua infelicidade. Disso tudo seria viável retirar argumentos para uma leitura pessimista.
Por outro lado, acredito que a própria figura de Emílio nos dá fundamentos para outra linha de compreensão. Ainda que nem todas as expectativas geradas em torno de seus relacionamentos tenham se concretizado na narrativa deixada por Rousseau, o protagonista permanece como um exemplo de força moral, o que atesta o poder de sua educação. Ainda que os acontecimentos funestos ocorridos em sua família o tenham perturbado, ele logo conseguiu se recuperar e não se deixou abater novamente nem mesmo quando se viu submetido à escravidão. Até nessa condição que seria profundamente degradante para a grande maioria das pessoas, o comportamento virtuoso de Emílio fez com que ele se sobressaísse por qualidades como a coragem, a sinceridade e a sensatez, permitindo-lhe alterar sua situação e ajudar os que estavam sendo maltratados junto com ele.
Então, parece-me que a mensagem do Emílio não é unicamente de pessimismo frente a uma realidade social marcada por graves problemas muito difíceis de serem solucionados. Ela também aponta para uma via de leitura na qual a preservação da dignidade humana, em meio aos contínuos desafios que cada um encontra ao longo da vida, revela-se um valor de suma importância, algo que pode conferir um sentido crucial à existência. Ao atentarmos para isso, vemos Rousseau nos ensinando que conquanto as práticas e as instituições injustas presentes nos Estados modernos não possam ser transformadas em prol da liberdade política, tal como ele a concebia, o ser humano continua capaz de se tornar moralmente livre; essa seria uma conquista que, uma vez alcançada, nada nem ninguém poderia destruir. Portanto, trata-se de uma mensagem muito instigante baseada na crença no potencial do homem para elevar a si próprio, apesar de todos os riscos e obstáculos a serem vencidos durante o percurso.
A possibilidade de se extrair mensagens distintas do Emílio e das outras obras rousseaunianas demonstra, como Allan Bloom salientou, que seu autor soube captar bem a complexidade dos fenômenos humanos e o caráter problemático de quaisquer soluções oferecidas para as divisões que os atravessam. Diante de um mundo profundamente insatisfatório, Rousseau buscou imaginar caminhos que conduziriam a rumos diferentes daqueles seguidos pelas pessoas de seu tempo. Em determinados momentos, essa procura o levou a teorizar sobre uma comunidade política republicana habitada por cidadãos livres. Noutros, ele se dedicou às reflexões idiossincráticas de quem já se via completamente à margem do convívio social. No caso de Emílio, Bloom sugere, talvez tenhamos um meio termo, pois ele "está em algum lugar entre o cidadão do Contrato Social e o solitário dos Devaneios, faltando-lhe algo de cada um" (BLOOM, 1979, p. 28). Então, valeria a pena educar alguém como ele, que seria, de certo modo, um estranho entre seus pares? Se a resposta for negativa, quais opções restariam? Para Rousseau, a mais óbvia de todas era também a mais corriqueira, a saber, aquela que ele dizia servir para formar "homens de nosso século", ou seja, pessoas dotadas das qualidades típicas de uma época decadente e que não eram boas nem para si nem para outrem. Contudo, educar um indivíduo para não estar em contradição consigo mesmo, cujas ações fossem sempre coerentes com suas palavras, cujas convicções não desmoronassem frente aos inevitáveis percalços da vida, é um trabalho que requer as condições apropriadas e, igualmente, a tomada de uma decisão muito séria por parte dos pais. No prefácio do Emílio, o autor deixou clara sua opinião de que não adiantava tentar remediar a péssima pedagogia vigente com algumas medidas paliativas, já que o bem destas se esgotaria e o mal daquela não se curaria. Acerca da dúvida sobre a aplicabilidade de suas ideias, ele fez uma constatação que enfatiza o papel decisivo da família na educação dos jovens, lembrando algo que continua sendo pertinente para nosso próprio tempo: "Pais e mães, o que é realizável é o que vós desejais fazer. Devo eu ser responsável por vossa vontade?"

Renato Moscateli

Bibliografia citada
BLOOM, Allan. Introduction. In: ROUSSEAU, J.-J. Emile or On Education. Trad. Allan Bloom. Nova York: Basic Books, 1979.

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