domingo, 27 de novembro de 2011

Resenha do livro de Renato Moscateli

(postado por José Oscar de Almeida Marques) 
 
Nova resenha na seção ESTANTE do site da ANPOF:


Confira a resenha escrita por Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd para o novo livro de Renato Moscateli, intitulado “Rousseau frente ao legado de Montesquieu. História e teoria política no Século das Luzes”.

Acesse:

http://anpof.org.br/spip.php?article146

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Comentário sobre "Rousseau e o problema do 'limiar-epocal' dos conceitos políticos"

     As questões interessantes propostas pelo Renato e a contribuição, sempre pertinente, do professor José Oscar me remeteram diretamente aos primeiros estudos que realizei sobre Rousseau. Lembrei-me das dificuldades que enfrentei enquanto buscava evidenciar um núcleo antigo no pensamento político de J.-Jacques Rousseau, um filósofo moderno. Penso que deve ser levada em conta uma peculiaridade do nosso autor, bem lembrada por Bruno Bernardi (2006), que é a de “constituir suas orientações essenciais remanejando, deslocando, transformando os conceitos que ele recebe das tradições teóricas que confronta”. Rousseau forma, desse modo, conceitos próprios ao seu horizonte de pensamento, o que acaba por dificultar todas as tentativas de enquadrá-lo.
     É evidente que sendo um homem do seu tempo, Rousseau não se furtou às influências da revolução metodológica dos séculos XVI e XVII. Nas esferas social e política a Modernidade seria testemunha de empreitadas ambiciosas, cujo objetivo era alcançar, nestes domínios, o que Copérnico, Galileu e Newton tinham conseguido na esfera dos fenômenos físicos. Hobbes foi, sem dúvida, um exemplo desse esforço, em que o domínio da natureza física incluiria o domínio da natureza humana. Esta nova visão mecanicista de natureza da modernidade viria substituir a visão pré-moderna dominante, derivada de uma perspectiva que pode ser chamada de aristotelismo cristão, que abrangia a vida humana, inclusive as faculdades superiores da alma, e era orientada para um télos.
    O curioso é que nesse campo de batalha filosófico, tanto parece ser possível situar Rousseau em ambos os lados da clivagem, quanto constatar o seu surpreendentemente original entendimento da relação homem/natureza/história. Embora ele tenha certas afinidades pronunciadas com os antigos, e apesar do seu entendimento da natureza, em seu sentido puro, ser decididamente moderno, suas visões tanto das possibilidades humanas naturais, quanto dos meios de atualizá-las, são bastante distintas. Laurence Cooper em Rousseau, Nature and the problem of the good life (1999), faz uma análise interessante dessa posição intermediária de Rousseau. Segundo Cooper, Rousseau aceita, em parte, o “truncamento moderno da natureza”, que elimina ou, pelo menos, relega para o reino do supranatural tudo aquilo que não pode ser submetido a critérios de cientificidade. Entretanto, Rousseau mantém a naturalidade do que ele entende serem as faculdades superiores ou, nos termos de Cooper, a “naturalidade do sublime”. Rousseau tanto estende quanto repudia a tendência moderna, diz Cooper, ele a estende ao negar a naturalidade de qualquer coisa que não exista no puro estado de natureza: o homem nesse estado é pré-racional e pré-moral, é praticamente destituído de tudo o que a maioria de nós reconhecemos como distintamente humano. Por outro lado, ele a repudia ao apresentar figuras como o Emílio ou o solitário Jean-Jacques como exemplares genuínos do homem natural vivendo em sociedade. Nisso ele parece estar sustentando, com os pré-modernos, uma concepção mais inclusiva e menos mecanicista de natureza. De acordo com Cooper, Rousseau é capaz de mover-se nessas duas direções simultaneamente porque “ele sustenta uma concepção de natureza que engloba duas partes: o que é natural no estado selvagem e o que é natural no estado civil” (p. 73). Rousseau consegue fazer isso muito bem, acentua Cooper, porque as duas partes se encaixam de forma coerente. De fato, a genialidade da visão de Rousseau reside, precisamente, na integração que ele faz dessas duas partes.
     Com o fim de representar a posição aparentemente intermediária de Rousseau entre as concepções de natureza pré-moderna (aristotelismo cristianizado) e dos primeiros modernos (baconiana, hobbesiana), Cooper emprega uma analogia geométrica bem interessante. Veja-se o esquema:


     A concepção pré-moderna de natureza pode ser convenientemente representada como uma pirâmide ou um triângulo equilátero, cujo topo representa as faculdades humanas superiores. O uso adequado dessas faculdades constitui a mais alta realização da natureza. A moderna concepção de natureza, nesse sentido, seria mais precisamente retratada como uma pirâmide truncada ou uma forma trapezóide. O que na visão aristotélico-cristã consistia o topo, agora tem seu status natural negado; a espiritualidade, se sua existência foi concedida, é removida para o reino do supranatural. De acordo com esse esquema geométrico, a concepção de Rousseau torna-se mais complexa: ela é representada como um trapézio, que é ainda mais squat (encurtado) ou truncado do que o dos primeiros modernos. Porém, sobre ele repousa um triângulo desenhado em linhas seccionadas, um triângulo que, combinado com o trapézio, constitui uma pirâmide. Segundo Cooper, as linhas sólidas abrangem o que é natural no estado selvagem, as linhas seccionadas, o que é natural no estado civil. Cooper entende que a representação por linhas seccionadas do que é natural no estado civil, é bastante apropriado pelo menos por duas razões: em primeiro lugar, o que é natural no estado civil é secundário à natureza original, é fruto do desenvolvimento histórico. Mais até do que isso, o que é natural no estado civil é logicamente secundário, pois para que as mais altas capacidades humanas cumpram os critérios de naturalidade em qualquer sentido, elas devem preservar a harmonia da natureza em seu sentido primário, e para que este seja o caso, a direção do desenvolvimento destas faculdades superiores deve, na prática, ser contínua ou projetada a partir do que é natural no estado de natureza.
   Entretanto, é preciso prudência, a analogia geométrica expressa afinidades e não semelhanças. O que estaria, por exemplo, no topo da pirâmide segundo a visão de Rousseau, não coincide com a visão pré-moderna, ou seja, para Rousseau seria o sentimento de existência, sua ampliação mediante o desenvolvimento das faculdades que estendem e aprofundam o amor de si. Em suma, o que na visão pré-moderna seria definido como realização intelectual, para Rousseau seria realização do sentimento.

Marisa Vento

Referências
BERNARDI, Bruno. La Fabrique des concepts – Recherches sur l’invention conceptuelle chez Rousseau. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2006.
COOPER, Laurence, D. Rousseau, Nature, and the problem of the good life. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 1999.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Rousseau e o problema do “limiar-epocal” dos conceitos políticos II

 José Oscar, agradeço pelos ótimos comentários sobre os temas que propus.
Penso que são muito importantes suas observações acerca da posição específica de Rousseau frente aos problemas da modernidade, a qual coloca o filósofo em destaque dentro do contexto do Iluminismo justamente pela condenação que ele dirige a certos pressupostos mantidos por alguns de seus contemporâneos. Mesmo partindo do terreno aberto pelas teses políticas hobbesianas, ele fez isso seguindo um caminho de questionamentos para formular sua própria versão da teoria contratualista. E por ser um moderno capaz de criticar a modernidade − ou um “antimoderno”, como você assinalou −, Rousseau tem um valor duradouro ainda para a nossa época.
Acho que é interessante explicar um pouco melhor o que suscitou minhas questões em relação ao texto de Giuseppe Duso. Esse artigo foi o material de referência para os debates do grupo de pesquisa “Republicanismo e democracia” dos quais participei recentemente. Enquanto discutíamos as ideias do autor sobre um modelo de História conceitual que ele defende, surgiu uma dúvida sobre a validade de certas proposições do professor italiano.
Por um lado, Duso ressalta a ideia de que os conceitos não têm história. Para ele, isso decorre do fato de que “o conceito assume um significado determinado em relação a um determinado contexto (...). Os trabalhos que se colocam no horizonte em que a história dos conceitos é descrição das mudanças históricas que os conceitos sofreram no tempo, implicam, de um lado, o tempo histórico, com a sua mudança e, do outro, paradoxalmente, uma identidade do conceito que muda. A mudança é histórica. Racional é a identidade do conceito ou daquele seu substrato que permite o mudar das diversas declinações históricas. Deste modo, teríamos um conceito universal, válido em si e, portanto, não determinado por um contexto: tal atitude é radicalmente outra daquela assumida pela história conceitual”. Uma consequência dessa perspectiva é a de quando pensamos estar testemunhando mudanças históricas nos conceitos, na verdade o que vemos é o “nascimento de novos conceitos que utilizam, para entrar em circulação, palavras antigas e já conhecidas. Isto acontece, por exemplo, com palavras que são típicas da maneira moderna de entender a política. Palavras como ‘sociedade’, ‘Estado’, ‘soberania’, ‘povo’, ‘economia’ − e o elenco poderia continuar − podem ser encontradas nos contextos linguísticos precedentes à ciência política moderna, onde indicam realidades diversas.”
Por outro lado, mesmo tendo enfatizado a especificidade histórica dos conceitos ao longo do tempo, Duso pretende que se podem distinguir apenas dois “princípios organizadores” dentro dos quais os problemas da política foram enquadrados em dois grandes períodos, a saber, o princípio posto pela filosofia grega ou aristotélica (que teria valido da Antiguidade até por volta do século XVII) e o princípio inaugurado pela teoria hobbesiana (a partir do qual se constitui a ciência política moderna). Comparando esses momentos distintos, ele diz: “me parece que se possa identificar nesta filosofia política [do jusnaturalismo], ou ciência (...), a dimensão construtiva de uma forma, de um modelo, da qual depende a dimensão normativa, porque, para manter a paz e a ordem é este modelo que se precisa aplicar. Poderíamos definir como teórica tal forma de pensamento que opera uma ruptura com a filosofia precedente. Esta última é acusada de não resolver o problema da prática e da convivência entre os homens, na medida em que permanece acreditando na virtude, na experiência e na tentativa de preservar a idéia de justiça, em lugar de optar pela clareza da solução oferecida pela ciência. Com o termo teoria podemos, portanto indicar o aspecto construtivo e normativo da ciência ou filosofia política moderna, cuja consciência crítica comporta a emergência de um sentido ‘outro’, diferente do pensamento mais propriamente filosófico. Radicalizando o discurso poderíamos dizer que, se é filosófico o gesto do pensamento dos gregos, a filosofia política moderna a que nos referimos não é mais uma filosofia, mas, antes, uma construção teórica.”
De acordo com Duso, a “férrea construção, na qual assumem significado os conceitos modernos, apresenta algumas aporias fundamentais, algumas contradições que não permitem um apaziguamento na solução que tal ciência oferece. Ela nasce a partir do problema do bem e do justo que havia ocupado o pensamento por dois milênios, mas, ao mesmo tempo, oferece uma solução que tende a fazer calar este problema, a exorcizá-lo porque o considera como perigoso e causador de conflitos e de guerra. Ao problema da justiça se oferece uma solução formal, a da forma política moderna, na qual é justo obedecer a quem expressa aquele tipo de comando que é a lei, uma vez que é autorizado por todos, é o representante de todos. A sua vontade é, por isso, a vontade de todos. O problema da justiça aparece exorcizado pelo nexo liberdade-poder que tem sentido no momento em que, num mundo relativizado, o que possui significado é somente a vontade”.
Certamente, Duso oferece bons argumentos em seu artigo para justificar essa divisão entre as épocas do pensamento político. Contudo, ao debatermos o texto, ficamos com a impressão de que ela estaria baseada em generalizações muito amplas, e que talvez esses dois grandes “blocos históricos” não seriam tão unificados assim por seus respectivos “princípios organizadores”. Foi nesse momento que fiz referência a Rousseau para pensarmos a dificuldade presente na ideia do “limiar-epocal”. Sem dúvida, a obra política rousseauniana rejeita diversas teses centrais do modelo aristotélico, e se constitui tendo o quadro conceitual hobbesiano em vista. Entretanto, uma das diferenças mais importantes entre Rousseau e os outros contratualistas é sua busca por incorporar elementos do republicanismo antigo em sua reflexão política. Isso é visível desde o Primeiro Discurso, no elogio às cidades de Esparta e de Roma, e aparece constantemente em outros textos, nos quais o filósofo coloca em evidência o papel da virtude cívica para a coesão do Estado, do patriotismo e da subordinação do governo aos ditames do bem público. Esse “retorno aos antigos” não significa, é verdade, a adoção de uma concepção pré-moderna de política, mas é algo que está no cerne das propostas de Rousseau e não pode ser subestimado, uma vez que ajudou a moldar sua crítica da modernidade.
Provavelmente, chamar a atenção para essa mescla de elementos antigos e modernos na obra de Rousseau não é suficiente para colocar em cheque a perspectiva sugerida por Duso. Porém, fazer isso parece válido pelo menos para mostrar que a complexidade das ideias de alguns autores dificulta seu enquadramento em determinadas classificações. Se retomarmos o texto de Leo Strauss, por exemplo, vemos que ele propõe um marco diverso daquele fixado por Duso para a ruptura com a filosofia política clássica, ou seja, Maquiavel em vez de Hobbes. Além disso, Strauss também discerne três diferentes “ondas” dentro da modernidade, cada qual com enfoques que as distinguem, em alguma medida, das outras.
Enfim, mesmo se for correto dizer que os conceitos políticos modernos só adquirem sentido a partir do “princípio organizador” fundado em Hobbes, incluindo vários dos conceitos empregados pelo autor do Contrato Social, será que também não há certos conceitos usados por Rousseau que somente fazem sentido quando os remetemos à forma como a Antiguidade Greco-romana entendia a política? Ou então seria mais adequado afirmar que até mesmo esses conceitos que evocam as instituições e os costumes dos antigos, ao serem utilizados por Rousseau, o são de um modo completamente integrado à forma moderna de compreensão da política?

Renato

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Rousseau e o problema do “limiar-epocal” dos conceitos políticos

No artigo intitulado História conceitual como filosofia política, o professor italiano Giuseppe Duso baseia-se nas ideias de Reinhart Koselleck e Otto Brunner para realizar uma discussão acerca das propostas da chamada História Conceitual (Begriffsgeschichte). Entre os vários tópicos abordados pelo autor, um dos mais importantes é o que ele chama de Sattelzeit (limiar-epocal), isto é, o período histórico em que acontece a mudança radical de significado entre os conceitos políticos antigos e os modernos.
De acordo com Duso, “Koselleck tem razão em colocar a Sattelzeit, para a época moderna, na segunda metade do século XVIII (período também indicado por Brunner), caso se refira à difusão dos conceitos na vida social, cultural e política. Todavia, se olharmos para a gênese destes conceitos (...), podemos concluir que a Trennung em relação a um milenar modo de entender o mundo, o homem e a política nasce antes da segunda metade do século XVIII. Todos os conceitos que se difundem no final desse século e que se tornam comuns, encontram-se já elaborados e determinados na nova ciência política de Hobbes, a partir da metade do século XVII. É neste contexto que o âmbito temático da antiga política (o bem viver, o bom governo e a virtude necessária para isto) − quando se perde um mundo objetivo que serve de orientação − acaba sendo substituído pela problemática da ordem, de uma ordem a ser construída, porque na realidade não existe, e pela nova ciência que rigorosamente pode alcançar este objetivo: o direito natural. (...) a nova maneira de entender o problema da convivência entre os homens − uma convivência que só é possível mediante um poder criado e desejado por todos − é o argumento principal da nova ciência do direito natural.” (p. 56-57)
Nesse sentido, o professor italiano argumenta que “Com Hobbes, temos explicitamente a tentativa de anular a maneira de pensar a política característica da antiga ciência prática: esta é considerada como desprovida de rigor científico e, por isso, insuficiente para alcançar a finalidade da vida comum dos homens, isto é, aquela autoconservação dos indivíduos que só é possível mediante a paz. A anulação do pensamento da filosofia prática é acompanhada pela negação do papel que a experiência ocupava no modo antigo de pensar a política. A realidade das associações humanas não é mais significativa, uma vez que estas últimas são consideradas como irregulares e injustas. É o estado de natureza, entendido não como estado originário, mas como situação em que o homem se encontraria fora da sociedade, que constitui o estratagema teórico útil a esta operação. Com isso vem a se criar um espaço livre, uma tabula rasa, sobre a qual a nova ciência, que se inspira no rigor geométrico, pode traçar suas linhas para garantir finalmente paz e ordem entre os homens.” (p. 58)
Assim, Hobbes teria se afastado da concepção aristotélica, presente na Política, de que haveria uma diferença entre os homens, pela qual alguns são aptos para governar e outros para serem governados. Contra isso “se move a nona lei de natureza, que retoma um elemento fundamental da antropologia hobbesiana, basilar para a ciência política: ‘cada um deve reconhecer o outro como igual a si mesmo por natureza’. O princípio da igualdade entre os homens, que implica considerá-los não em relação ao seu diferente status, mas todos como indivíduos, está na raiz desta construção e determina o novo princípio organizador a partir do qual se deve entender a vida comum dos homens e, portanto, da sociedade. Sobre o fundamento da igualdade dos indivíduos, e apenas sobre isto, é possível uma construção teórica que conduz ao conceito moderno de soberania com o caráter absoluto que comporta: e isto não acontece apenas com Rousseau, mas já antes, no pensamento político de Hobbes.” (p. 58-59)
“Para delinear esquematicamente os elementos desta nova maneira de entender a política”, prossegue Duso, “temos que acrescentar alguns elementos essenciais. Se o ‘estado de natureza’ é imaginado como uma situação não social do homem e, portanto, como um mundo de indivíduos iguais, pensa-se ao mesmo tempo um conceito novo, o de liberdade. Esta não tem nada mais a ver com o modo antigo de pensar as diversas libertates, mas – a partir da noção de indivíduo igual e da concepção mecanicista do homem −, a liberdade é pensada como falta de obstáculos em relação à ‘exteriorização’, por parte de cada um, da própria força e do próprio engenho − do próprio poder − e consequentemente como dependência de cada um exclusivamente da própria vontade. Igualdade e liberdade, enquanto independência, estão por isso nos alicerces da construção daquela sociedade civil que deve impedir a guerra recíproca e garantir a ordem e a paz: elas substituem a antiga idéia de justiça que, desde Platão, estava no centro da reflexão política.” (p. 59)
Perto da conclusão do artigo, Duso propõe: “podemos afirmar que, como na filosofia aristotélica (mas em sentido mais amplo e em alguns aspectos se pode dizer da filosofia grega) podemos rastrear o princípio organizador que reconduz à unidade, durante um período de tempo muito longo, as diferentes doutrinas e que confere um significado aos termos utilizados para a esfera prática, assim como no jusnaturalismo moderno e, in primis na construção política de Hobbes, podemos encontrar um princípio organizador e um horizonte total de compreensão, somente em relação ao qual os novos conceitos políticos assumem um determinado significado.” (p. 62-63) Desse modo, Duso enfatiza uma diferença capital entre o significado da política moderna e o modo de entender a política do mundo precedente, pois o autor do Leviatã teria levado a uma ruptura radical com um universo intelectual fundado sobre a noção de justiça e sobre o problema da virtude, no qual havia lugar para o problema do “bom governo”.
Ao ler o artigo do professor italiano, lembrei-me de algumas ideias expostas por Leo Strauss em What is political philosophy? Nesse texto, o autor afirma que existe uma solução “clássica” para o problema da filosofia política que remonta aos pensadores da Antiguidade, tais como Platão e Aristóteles, de acordo com a qual “o objetivo da vida política é a virtude, e a ordem mais adequada para conduzir à virtude é a república aristocrática, ou ainda o regime misto.” (p. 39) Além dessa solução, há também outras que foram dadas pela filosofia política moderna, cujo fundador seria Maquiavel. Para Strauss, Hobbes, Locke e Rousseau estavam entre os que seguiram a trilha aberta pelo escritor florentino, e todos os três teriam compartilhado um mesmo ponto de partida, a saber, a rejeição do esquema clássico da política como sendo não-realista, pois compreendiam que a raiz da sociedade civil encontrava-se no direito de autopreservação. Entretanto, apesar da proximidade com os dois autores ingleses, Rousseau teria feito parte, ainda segundo Strauss, de uma “segunda onda” na modernidade, caracterizada por um retorno aos modos pré-modernos de pensamento: “Rousseau voltou do mundo das finanças, que ele foi o primeiro a chamar de mundo do bourgeois, para o mundo da virtude e da cidade, o mundo do citoyen. (...) Todavia, ele interpretou a cidade clássica à luz do esquema de Hobbes” (p. 52).
Diante das teses de Duso e de Strauss, eu gostaria de levantar algumas questões. Dado que Rousseau utilizou diversos tópicos do modelo hobbesiano para construir seu próprio pensamento político (estado de natureza, pacto social, soberania absoluta etc.), mas ao mesmo tempo buscou recuperar elementos da Antiguidade para inseri-los nele − entre os quais estava a virtude cívica como requisito indispensável para qualquer república bem ordenada −, como poderíamos situá-lo em relação ao “limiar-epocal” apresentado por Duso? A realização daquele “retorno aos modos pré-modernos de pensamento” apontado por Strauss seria uma característica da obra rousseauniana que colocaria um problema para a tese do “limiar-epocal”? Ou então a obra de Rousseau, mesmo recorrendo a certas noções do modo antigo de se pensar a política, continuou seguindo essencialmente o “princípio organizador” configurado em primeiro lugar nos textos de Hobbes?
Convido os colegas a darem suas respostas a essas questões e também a outras relacionadas que considerarem pertinentes. Para isso, basta clicar no link Comentários logo abaixo da postagem e inserir seu texto.

Renato Moscateli

Referências
Duso, Giuseppe. Historia conceptual como filosofía política. Res publica, n. 1, p. 37-71, 1998. Disponível em: http://revistas.um.es/respublica/article/view/25721/24961
Strauss, Leo. An introduction to political philosophy: ten essays by Leo Strauss. Detroit: Wayne State University Press, 1989.