quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Rousseau e o problema do “limiar-epocal” dos conceitos políticos II

 José Oscar, agradeço pelos ótimos comentários sobre os temas que propus.
Penso que são muito importantes suas observações acerca da posição específica de Rousseau frente aos problemas da modernidade, a qual coloca o filósofo em destaque dentro do contexto do Iluminismo justamente pela condenação que ele dirige a certos pressupostos mantidos por alguns de seus contemporâneos. Mesmo partindo do terreno aberto pelas teses políticas hobbesianas, ele fez isso seguindo um caminho de questionamentos para formular sua própria versão da teoria contratualista. E por ser um moderno capaz de criticar a modernidade − ou um “antimoderno”, como você assinalou −, Rousseau tem um valor duradouro ainda para a nossa época.
Acho que é interessante explicar um pouco melhor o que suscitou minhas questões em relação ao texto de Giuseppe Duso. Esse artigo foi o material de referência para os debates do grupo de pesquisa “Republicanismo e democracia” dos quais participei recentemente. Enquanto discutíamos as ideias do autor sobre um modelo de História conceitual que ele defende, surgiu uma dúvida sobre a validade de certas proposições do professor italiano.
Por um lado, Duso ressalta a ideia de que os conceitos não têm história. Para ele, isso decorre do fato de que “o conceito assume um significado determinado em relação a um determinado contexto (...). Os trabalhos que se colocam no horizonte em que a história dos conceitos é descrição das mudanças históricas que os conceitos sofreram no tempo, implicam, de um lado, o tempo histórico, com a sua mudança e, do outro, paradoxalmente, uma identidade do conceito que muda. A mudança é histórica. Racional é a identidade do conceito ou daquele seu substrato que permite o mudar das diversas declinações históricas. Deste modo, teríamos um conceito universal, válido em si e, portanto, não determinado por um contexto: tal atitude é radicalmente outra daquela assumida pela história conceitual”. Uma consequência dessa perspectiva é a de quando pensamos estar testemunhando mudanças históricas nos conceitos, na verdade o que vemos é o “nascimento de novos conceitos que utilizam, para entrar em circulação, palavras antigas e já conhecidas. Isto acontece, por exemplo, com palavras que são típicas da maneira moderna de entender a política. Palavras como ‘sociedade’, ‘Estado’, ‘soberania’, ‘povo’, ‘economia’ − e o elenco poderia continuar − podem ser encontradas nos contextos linguísticos precedentes à ciência política moderna, onde indicam realidades diversas.”
Por outro lado, mesmo tendo enfatizado a especificidade histórica dos conceitos ao longo do tempo, Duso pretende que se podem distinguir apenas dois “princípios organizadores” dentro dos quais os problemas da política foram enquadrados em dois grandes períodos, a saber, o princípio posto pela filosofia grega ou aristotélica (que teria valido da Antiguidade até por volta do século XVII) e o princípio inaugurado pela teoria hobbesiana (a partir do qual se constitui a ciência política moderna). Comparando esses momentos distintos, ele diz: “me parece que se possa identificar nesta filosofia política [do jusnaturalismo], ou ciência (...), a dimensão construtiva de uma forma, de um modelo, da qual depende a dimensão normativa, porque, para manter a paz e a ordem é este modelo que se precisa aplicar. Poderíamos definir como teórica tal forma de pensamento que opera uma ruptura com a filosofia precedente. Esta última é acusada de não resolver o problema da prática e da convivência entre os homens, na medida em que permanece acreditando na virtude, na experiência e na tentativa de preservar a idéia de justiça, em lugar de optar pela clareza da solução oferecida pela ciência. Com o termo teoria podemos, portanto indicar o aspecto construtivo e normativo da ciência ou filosofia política moderna, cuja consciência crítica comporta a emergência de um sentido ‘outro’, diferente do pensamento mais propriamente filosófico. Radicalizando o discurso poderíamos dizer que, se é filosófico o gesto do pensamento dos gregos, a filosofia política moderna a que nos referimos não é mais uma filosofia, mas, antes, uma construção teórica.”
De acordo com Duso, a “férrea construção, na qual assumem significado os conceitos modernos, apresenta algumas aporias fundamentais, algumas contradições que não permitem um apaziguamento na solução que tal ciência oferece. Ela nasce a partir do problema do bem e do justo que havia ocupado o pensamento por dois milênios, mas, ao mesmo tempo, oferece uma solução que tende a fazer calar este problema, a exorcizá-lo porque o considera como perigoso e causador de conflitos e de guerra. Ao problema da justiça se oferece uma solução formal, a da forma política moderna, na qual é justo obedecer a quem expressa aquele tipo de comando que é a lei, uma vez que é autorizado por todos, é o representante de todos. A sua vontade é, por isso, a vontade de todos. O problema da justiça aparece exorcizado pelo nexo liberdade-poder que tem sentido no momento em que, num mundo relativizado, o que possui significado é somente a vontade”.
Certamente, Duso oferece bons argumentos em seu artigo para justificar essa divisão entre as épocas do pensamento político. Contudo, ao debatermos o texto, ficamos com a impressão de que ela estaria baseada em generalizações muito amplas, e que talvez esses dois grandes “blocos históricos” não seriam tão unificados assim por seus respectivos “princípios organizadores”. Foi nesse momento que fiz referência a Rousseau para pensarmos a dificuldade presente na ideia do “limiar-epocal”. Sem dúvida, a obra política rousseauniana rejeita diversas teses centrais do modelo aristotélico, e se constitui tendo o quadro conceitual hobbesiano em vista. Entretanto, uma das diferenças mais importantes entre Rousseau e os outros contratualistas é sua busca por incorporar elementos do republicanismo antigo em sua reflexão política. Isso é visível desde o Primeiro Discurso, no elogio às cidades de Esparta e de Roma, e aparece constantemente em outros textos, nos quais o filósofo coloca em evidência o papel da virtude cívica para a coesão do Estado, do patriotismo e da subordinação do governo aos ditames do bem público. Esse “retorno aos antigos” não significa, é verdade, a adoção de uma concepção pré-moderna de política, mas é algo que está no cerne das propostas de Rousseau e não pode ser subestimado, uma vez que ajudou a moldar sua crítica da modernidade.
Provavelmente, chamar a atenção para essa mescla de elementos antigos e modernos na obra de Rousseau não é suficiente para colocar em cheque a perspectiva sugerida por Duso. Porém, fazer isso parece válido pelo menos para mostrar que a complexidade das ideias de alguns autores dificulta seu enquadramento em determinadas classificações. Se retomarmos o texto de Leo Strauss, por exemplo, vemos que ele propõe um marco diverso daquele fixado por Duso para a ruptura com a filosofia política clássica, ou seja, Maquiavel em vez de Hobbes. Além disso, Strauss também discerne três diferentes “ondas” dentro da modernidade, cada qual com enfoques que as distinguem, em alguma medida, das outras.
Enfim, mesmo se for correto dizer que os conceitos políticos modernos só adquirem sentido a partir do “princípio organizador” fundado em Hobbes, incluindo vários dos conceitos empregados pelo autor do Contrato Social, será que também não há certos conceitos usados por Rousseau que somente fazem sentido quando os remetemos à forma como a Antiguidade Greco-romana entendia a política? Ou então seria mais adequado afirmar que até mesmo esses conceitos que evocam as instituições e os costumes dos antigos, ao serem utilizados por Rousseau, o são de um modo completamente integrado à forma moderna de compreensão da política?

Renato

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