Fabrício, agradeço pelos novos comentários
e questionamentos (Nota 1)
Algo que precisa ser compreendido logo
de início é que, nas minhas postagens anteriores, quando eu diferencio as
características de dois tipos de moralidade, ou seja, a apropriada aos cidadãos
republicanos e a que cabe ao homem em geral, não estou concebendo o segundo
tipo como se fosse o equivalente da capacidade básica e genérica que todos os
seres humanos têm de desenvolver qualidades morais, uma capacidade que, nas
obras de Rousseau, decorre da consciência, da razão e do amor de si (nota 2).
Nesse sentido, os dois tipos de moralidade em questão são modalidades distintas
que se constituem a partir dessa mesma base, mas de acordo com maneiras
díspares de socialização. Num caso, temos as pessoas cuja consciência e cujas
paixões foram modeladas pela educação cívica republicana, e no noutro temos um
indivíduo (Emílio) cuja consciência e cujas paixões foram formadas para que ele
pudesse estender seu "eu humano" sobre toda a humanidade (Nota 3).
Pois bem, você propõe que seria correto
"afirmar que a moralidade do homem em geral fundamenta-se no solo
metafísico, enquanto a do homem civil no jurídico; uma é natural e a outra
artificial"; entretanto, eu não vejo que tais distinções funcionem
exatamente desse modo. Ainda que se possa dizer que a moralidade tenha uma base
natural na consciência inata – o "instinto divino" mencionado por
Rousseau –, ela só se desenvolve, tanto em alguém como Emílio quanto no cidadão
de uma dada república, por meio do convívio com os outros. Nas palavras de Michel
Launay, "a voz imortal e celeste da consciência só toca as ouvidos e o
coração do homem por intermédio de seu meio concreto, físico, político, social
e cultural. A voz imortal e celeste que dorme no homem desde o estado de
natureza (...) só desperta se o estado social permite-lhe adquirir forma e
delicadeza” (Nota 4). Portanto, a gênese da moralidade sempre precisará não
apenas daquilo que é natural, mas também dos estímulos oriundos da vida que se
tem dentro de uma comunidade humana, isto é, de uma existência que é
artificialmente construída pelas pessoas. No caso particular do cidadão
republicano, sua consciência será informada por elementos que vão além do
aspecto puramente jurídico, pois eles incluem a opinião pública, os valores
morais e os costumes próprios de sua pátria, como eu já havia salientado em
minhas outras postagens.
Isso torna problemática sua interpretação
de que "no homem em geral a determinação das ações humanas são de ordem
interior, a moralidade ali constituída é fruto da conjugação da razão com a
consciência, enquanto que no homem civil se determina por uma ordem exterior,
oriunda da vontade geral". Ora, em ambas as situações a moralidade é
proveniente de componentes internos e externos, pois a consciência e a razão
que existem no íntimo de cada ser humano necessitam de um contexto social para
atingirem seu papel de guia. Nos Estados republicanos, esse contexto é
fornecido pelas leis emanadas da vontade geral, bem como pelos bons costumes
nutridos pelo povo, cujos ditames são incorporados pelos cidadãos. Nos Estados
corrompidos, como vemos no Emílio, é
mais difícil ser virtuoso, embora não impossível, desde que se consiga aprender
a discernir entre o bem e o mal em meio aos "simulacros de leis", ao
predomínio dos interesses particulares, ao exercício da violência pública e às
instituições iníquas. Emílio é bem sucedido em alcançar esse objetivo graças ao
trabalho constante realizado pelo preceptor para mediar os contatos do jovem
com o mundo social.
Tendo
em vista esses pontos, o que eu posso dizer em relação às questões que você
levantou é o seguinte. A moralidade adquirida por Emílio não é a referência
(escala) para avaliar a correção da moralidade dos cidadãos das várias
repúblicas, pois elas levam a resultados que são desiguais. Esta tende a unir
indissoluvelmente as pessoas a uma dada coletividade política, ao passo que
aquela tende situar o indivíduo no plano muito mais abrangente da humanidade. Logo,
não faz sentido esperar que ambas possam coexistir harmonicamente nos mesmos
sujeitos. Na primeira das Cartas escritas
da montanha, Rousseau afirma que o patriotismo e a humanidade são "virtudes
incompatíveis em sua energia, e sobretudo em um povo inteiro. O Legislador que
visar as duas não atingirá nem uma nem a outra; esse acordo jamais foi visto e
nunca se verá, porque ele é contrário à natureza e porque não se pode dar dois
objetos à mesma paixão" (Nota 5). Consequentemente, o que causa a
degeneração moral dos homens é uma socialização mal conduzida que nem os
prepara para serem bons cidadãos de um Estado livre, nem homens virtuosos tais
como Emílio, os quais conseguiriam manter sua liberdade moral em qualquer
situação em que vivessem.
Finalmente, em função de toda a
argumentação que venho apresentando desde a primeira postagem, reitero meu
entendimento de que Emílio não foi formado para ser o cidadão republicano.
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Notas
1)
Para acessá-los, basta clicar no link Comentários
abaixo da postagem intitulada "Por que Emílio não é o cidadão republicano III".
2)
Se buscássemos apoio no Segundo Discurso,
poderíamos acrescentar também a piedade como uma paixão independente do amor de
si; no Emílio, por outro lado, lemos
que o amor de si é a fonte de todas as outras paixões, o que inclui a piedade.
2) Como o próprio Emílio diz em uma
carta endereçada a seu antigo preceptor em Emílio
e Sofia ou Os solitários. Ver ROUSSEAU. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 1980.
v. 4, p. 883.
4) Launay, Michel. Rousseau.
Paris: Presses Universitaires de France, 1968, p. 21. A esse respeito,
ver também Maruyama, natalia. A
contradição entre o homem e o cidadão. São Paulo: Humanitas; Fapesp, 2001,
p. 113.
5) ROUSSEAU. Œuvres complètes. Paris: Gallimard,
2003. v. 3, p. 706.