domingo, 23 de dezembro de 2012

Por que Emílio não é o cidadão republicano VI



Recentemente, chegaram-me novos comentários de André Queiroz de Lucena, os quais reproduzo a seguir:

Gostaria de retomar a nossa reflexão sobre o Emílio.
I. Na última vez havia dito que, segundo sua leitura, eu concluía que a obra resulta pessimista, pois faz do educando uma pessoa livre e íntegra, porém isolada em uma sociedade permeada pela corrupção. A tua resposta foi que há um pessimismo, mas considerando os propósitos de Rousseau, permanece igualmente um otimismo, dado pela nova perspectiva do Emilio.  Creio que em linhas gerais seja isso.
II. Durante a ANPOF (Nota 1), a professora Custódia Martins, da Universidade do Minho (Portugal), afirmou que no Emílio há um otimismo vigilante, tema, aliás, de um artigo dela. Isto é interessante, pois nos faz pensar ainda em nossa questão importante: de fato, parece que o otimismo pressupõe uma expectativa positiva em relação à...; o que não implica em uma ação presente. Neste sentido, perpassaria o Emílio um pessimismo que vive, entretanto, otimista e vigilante com relação ao futuro?  Não sei se os termos ficam contraditórios e confusos, mas parecem inscritos em uma questão essencial que toca o teu trabalho e esta reflexão – que cidadão é (será) o Emílio?  Por outro lado, se há tanto um pessimismo quanto um otimismo, e este é relação com o futuro, não deveríamos colocar o pessimismo à frente?
III. Ainda durante o GT Rousseau, a prof. Jacira de Freitas, circunscrevendo o que é natural e social, acenou com a existência tanto do otimismo quanto do pessimismo.  Ora, quanto a este, tema recorrente em nossas conversas, Rousseau alertou ao Homem que o autor do mal é ele mesmo (Profissão de fé e me parece a Carta sobre a Providência): reporta-se exclusivamente às nossas obras sociáveis, e o bem, por sua vez, às obras do Criador - “Tudo é bom” quando sai das mãos dele. Aqui há algo implícito que me parece levar para a reflexão política que gostaria de pensar adiante: se a natureza é boa e ordenada, não deveria a sociedade imitar a sua ordem? “O bom ordena-se em relação ao todo... o mau, o todo em relação a si”, nos fala ainda o texto do Emílio. A ação política e a Vontade Geral serão, portanto, artifícios bons e convencionais daquela ordem? O que acha?
Renato, com todas as precauções possíveis, se isto for admitido, não nos faz Rousseau transpor certa “cosmologia” do direito natural antigo (que os homens imitem em suas instituições a ordem reta e racional do universo?)?

Eis minha resposta:

André, em relação à possibilidade de leituras otimistas e pessimistas dos textos de Rousseau, a profa. Custódia realmente levanta alguns pontos interessantes. Remetendo à Carta a Voltaire sobre a Providência, na qual o genebrino discute certas implicações do terremoto que assolou Lisboa em 1755, ela diz: "Ser otimista ou ser pessimista depende (...) do ângulo de visão pelo qual optamos por perspetivar a realidade, disso dependendo a construção da nossa perceção acerca de qual o nosso lugar no mundo". Na sequência, ela acrescenta que o otimismo de Rousseau caracteriza-se por ser aquele que suaviza os males e leva à paciência diante daquilo que aflige o indivíduo, em oposição a um pessimismo que serviria para aguçar as dores, levantar queixas e causar desespero. Assim, escreve a autora, "A posição defendida por Rousseau é por isso bem clara: podemos afirmar que é um otimista vigilante" (MARTINS, 2012, p. 111). Tal qualificação indica que o filósofo, longe de se entregar a esperanças vãs em projetos quiméricos de resolução dos problemas sociais, reconhece os limites que cercam a ação humana e determinam o que pode ou não feito neste mundo. Consciente disso, a profa. Custódia conclui o artigo com a afirmação de que "Rousseau (...) optou por ser um otimista vigilante, na medida em que soube começar por ser um pessimista profilático" (MARTINS, 2012, p. 114).
Parece-me que essa última frase ajuda a responder a questão sobre a ordem de precedência do pessimismo em relação ao otimismo. De um modo geral, as obras de Rousseau apresentam uma visão bastante crítica da realidade socialmente produzida pelos homens, sobretudo devido às suas más consequências morais e políticas. Os primeiros escritos propriamente filosóficos do autor carregam nitidamente essa marca. Em seus dois discursos enviados à Academia de Dijon, isso é evidenciado pela análise dos impactos negativos do progresso das ciências e das artes sobre os costumes, como aparece no texto de 1749, e na narrativa hipotética dos infortúnios ligados ao surgimento da desigualdade entre os homens, no texto de 1754. Então, seria plausível qualificar essas obras como eminentemente pessimistas diante do curso da história, não porque neguem que as pessoas tenham o potencial para agir em prol de sua felicidade, e sim porque ressaltam os fracassos em concretizar esse potencial. Por outro lado, o Contrato Social, publicado alguns anos depois, não apenas define os parâmetros para se pensar um Estado republicano erigido sobre o direito e a liberdade, como também aponta uma possibilidade real de instituição de um corpo político desse tipo em pleno século XVIII, ou seja, aquele que os corsos tinham a chance de fundar em sua terra recém-libertada do jugo estrangeiro (Nota 2). Nesse caso, tratar-se-ia da adoção de uma perspectiva otimista no tocante ao futuro dos bravos ilhéus? Acredito que sim, desde que acrescentemos o adjetivo "vigilante" a esse otimismo. De fato, Jean-Jacques entusiasmou-se com a situação da Córsega, especialmente quando foi convidado a redigir um projeto de constituição para ela. Entretanto, ele sempre teve em mente os difíceis obstáculos envolvidos na implementação de suas recomendações, o que remete a tudo o que havia explicitado em suas investigações filosóficas contidas nos Discursos, incluindo também o próprio texto do Contrato Social, em que ele mostra quão raras são as condições de possibilidade do regime republicano. Portanto, penso que o binômio pessimismo/otimismo constitui uma relação bastante presente nas ideias de Rousseau, pois mesmo suas propostas mais otimistas não deixam de trazer consigo sérias dúvidas quanto ao seu sucesso. Talvez o conceito de perfectibilidade seja a síntese mais perfeita disso, na medida em que essa característica fundamental do ser humano é, ao mesmo tempo, a fonte de suas luzes e de seus erros, de seus vícios e de suas virtudes. Essa dualidade atravessa tudo o que fazemos porque define quem nós somos como indivíduos responsáveis por construir nossa própria história.
Ainda no Segundo Discurso, onde Rousseau nos fala sobre a perfectibilidade, encontramos o célebre trecho do prefácio em que o autor usa a estátua do deus Glauco, desfigurada pela ação do tempo, como metáfora para refletir sobre as mudanças sofridas pela alma humana no seio da sociedade. Jean Starobinski escreveu um belo comentário acerca dessa passagem: "Pode-se dizer ainda que a transparência original desapareceu? (...) Desertou-nos inteiramente ou ainda estamos em sua vizinhança? Rousseau hesita entre essas duas respostas contraditórias. Em dado momento, o mito bifurca em duas versões. A primeira afirma que a alma humana degenerou, que se desfigurou, que sofreu uma alteração quase total, para jamais reencontrar sua beleza primeira. A segunda versão, em lugar de uma deformação, evoca uma espécie de encobrimento: a natureza primitiva persiste, mas oculta, cercada de véus superpostos, sepultada sob os artifícios e, no entanto, sempre intacta. Versão pessimista e versão otimista do mito da origem. Rousseau sustenta ambas, alternadamente, e por vezes mesmo simultaneamente. Diz-nos que o homem destruiu de modo irremediável sua identidade natural, mas proclama também que a alma original, sendo indestrutível, permanece para sempre idêntica a si mesma  sob as manifestações externas que a mascaram" (STAROBINSKI, 1991, p. 26-27). O que o texto de Starobinski salienta é que, por mais que lamentasse os efeitos perniciosos provocados pela má socialização sobre os seres humanos, Rousseau não se esquecia de que existia algo de naturalmente bom em todos eles. Afinal, cada criança que vem ao mundo é um novo começo, tendo diante de si um caminho indefinido que pode levar a direções muito diferentes. A perfectibilidade é a chave que abre as portas dessa jornada.
Ao nos voltarmos para o Emílio, vemos que a leitura do livro corrobora essas constatações. O aluno imaginário de Rousseau representa esse ponto de partida repleto de possibilidades que o preceptor se esforça para realizar de um modo positivo. Que tipo de homem seria Emílio se percorresse a trilha apontada por seu zeloso mestre? Alguém autêntico, moralmente livre e capaz de preservar sua dignidade em todas as situações. Entretanto, que tipo de cidadão seria ele? Um sujeito engajado na reforma política da sociedade em busca do vivere civile republicano? Parece-me que não. Nesse caso, os limites da ação possível a um indivíduo como Emílio são aqueles apontados por Jean-Jacques na crítica dos Estados de sua época, a condenação de uma forma de civilidade na qual os homens se tornam as próprias máscaras que usam por sobre a face que a natureza lhes deu. Assim, o otimismo do filósofo quanto aos resultados hipotéticos de seu novo sistema de educação não deixa de ser, ele também, "vigilante", pois reconhece que muito se pode fazer, mas não tudo. Nesse sentido, Emílio poderia ser um exemplo moral para seus contemporâneos, inspirando-os a agir bem. Qual seria o impacto efetivo dessa imitação virtuosa, é algo muito difícil de dizer. Porém, como Rousseau havia ressaltado a importância de se ensinar mais pela força do exemplo do que pela dos meros sermões e repreensões, talvez a conduta modelar de Emílio pudesse exercer uma influência significativa sobre seus conterrâneos.
Esse tema da imitação leva ao terceiro ponto dos seus comentários, André. Você perguntou: "se a natureza é boa e ordenada, não deveria a sociedade imitar a sua ordem?" Pois bem, esse é um problema que levanta várias dúvidas complexas em relação ao pensamento de Rousseau, até mesmo polêmicas interpretativas bastante acirradas, para as quais eu não possuo uma solução própria, embora já tenha refletido sobre o assunto (Nota 3). Por isso, restrinjo-me a algumas breves observações.
Dentro de suas obras, o filósofo apresentou elementos que nos levam a ver o ordenamento natural como algo admirável, sobretudo em contraste com o caráter inerentemente falho das obras humanas. Como ele escreveu no Contrato Social, "Tudo o que não está na natureza tem seus inconvenientes, a sociedade civil mais do que todo o resto" (ROUSSEAU, 2003, p. 431). Em se tratando das leis que devem garantir a liberdade dos cidadãos no interior do corpo político, não há uma constituição perfeita e pronta para ser adotada em qualquer Estado, pois sempre é necessário levar em consideração as especificidades de cada povo, ou seja, suas condições de existência, as quais colocam limites particulares à qualidade da legislação que é a mais apropriada para ele. As sociedades civis serão mais bem ordenadas na medida em que a "natureza das coisas" relativas a elas for observada corretamente pelo Legislador (Nota 4). Lembrando o que Rousseau propôs no início do capítulo sobre a lei do Contrato, vemos que "Aquilo que está bem e consoante à ordem, assim o é pela natureza das coisas e independentemente das convenções humanas. Toda a justiça vem de Deus, que é a sua única fonte; se soubéssemos, porém, recebê-la de tão alto, não teríamos necessidade nem de governo, nem de leis" (ROUSSEAU, 2003, p. 378). Esse célebre trecho, ao mesmo tempo em que remete à bondade do modelo da ordem natural, salienta o enorme desafio contido no desejo de imitá-lo no âmbito da ordem política.
Sem dúvida, os homens podem fazer tentativas no sentido de dar às suas criações pelo menos um pouco das virtudes próprias do ordenamento da natureza. No Emílio, isso pode ser visto no que Rousseau fala sobre a estabilidade desejável para as leis civis. De acordo com ele, "Há dois tipos de dependência. A das coisas, que é da natureza; a dos homens, que é da sociedade. A dependência das coisas, que não tem nenhuma moralidade, não prejudica a liberdade e não engendra vícios. A dependência dos homens, que é desordenada, engendra-os todos, e é por ela que o senhor e o escravo se depravam mutuamente. Se há algum meio de remediar esse mal na sociedade, é substituir o homem pela lei, e armar as vontades gerais de uma força real, superior à ação de toda vontade particular. Se as leis das nações pudessem ter, como as da natureza, uma inflexibilidade que jamais nenhuma força humana pudesse vencer, a dependência dos homens se tornaria então a das coisas; reunir-se-iam na república todas as vantagens do estado natural às do estado civil; juntar-se-ia a liberdade, que mantém o homem isento de vícios, à moralidade que o educa para a virtude” (ROUSSEAU, 1980, p. 311). Dar tamanha solidez à legislação seria achar a solução para o problema da "quadratura do círculo" na política, ao qual Jean-Jacques alude em suas obras.
A respeito disso, Émile Durkheim fez alguns comentários interessantes. Para ele, a generalidade da vontade coletiva descrita no Contrato Social seria um esforço para reproduzir a impessoalidade das forças naturais que agem igualmente sobre todos os homens no estado pré-civil. No pensamento de Rousseau, diz Durkheim, o que é bom deve ter certo grau de necessidade, de onde viria sua visão positiva do estado natural: quando não dependiam de nada além da natureza para viver, os homens podiam ser considerados verdadeiramente independentes uns dos outros, uma vez que desejavam apenas o que podiam alcançar de acordo com os limites físicos de sua capacidade de agir. A dependência dos indivíduos em relação a coisas exteriores à sua vontade para garantir sua autopreservação, entretanto, não conduzia a um conflito entre querer e poder, pois as necessidades eram proporcionais aos meios de satisfazê-las. Com esse quadro em mente, Rousseau teria concebido a vontade geral como o fundamento adequado para a liberdade na ordem social. Para combater a instabilidade das relações humanas e as situações viciosas de subordinação aos particularismos da vontade individual, seria preciso estabelecer condições de existência nas quais todas as pessoas dependeriam igualmente “de uma força que, por sua impessoalidade, seria idêntica, mutatis mutandis, às forças naturais” (Durkheim, 1966, p. 150).
Estamos diante de um ideal de ordem política que, muito provavelmente, jamais seria realizável de forma plena, pois permanece evidente que, se essas duas forças, a da natureza e a da vontade geral, poderiam ter uma influência similar sobre os homens, a diferença em suas origens é essencial e restringe o grau de sucesso que as leis positivas conseguem atingir como padrão de comportamento internalizável. O Estado é uma obra da arte humana, e até mesmo os mais geniais dentre os Legisladores devem reconhecer a impossibilidade de se igualar a perfeição da criação divina. Ademais, o próprio trabalho de fundação da sociedade civil traz consigo um elemento complicador. A partir da matéria-prima fornecida pela natureza, ou seja, o indivíduo dotado de uma existência física e independente, e que por si mesmo é um todo perfeito e solitário, o Legislador empreende uma verdadeira transmutação, convertendo cada pessoa em parte de um todo maior constituído pelo corpo político. Esse processo retira algumas características originais do ser humano, mas lhe dá outras em troca, a mais importante delas sendo um conteúdo moral que o liga a todos os outros membros do pacto social. Assim, o indivíduo perde, de certo modo, suas forças próprias, para receber outras “das quais ele não possa fazer uso sem o auxílio de outrem. Quanto mais essas forças naturais são mortas e aniquiladas, mais as adquiridas são grandes e duráveis, mais, também, a instituição é sólida e perfeita” (ROUSSEAU, 2003, p. 382). Referindo-se a tal mudança no Emílio, o autor a descreve como uma "desnaturação" que subtrai a vida absoluta do homem para lhe dar uma vida relativa de cidadão dentro da unidade comum da sociedade.
Consequentemente, se a natureza pode servir de modelo ao Estado sob certos aspectos, sob outros é necessário se afastar dela para que a ordem política seja bem configurada (Nota 5). Por aí se vê quão difícil é a tarefa de se instituir e manter a sociedade civil. No Contrato Social, o autor enfatiza que "Não depende dos homens prolongar sua vida, depende deles prolongar a do Estado tão longe quanto é possível, dando-lhe a melhor constituição que ele possa ter. O mais bem constituído acabará, mas mais tarde do que outro, se nenhum acidente imprevisto levar à sua perda antes de tempo" (ROUSSEAU, 2003, p. 424). Alguns anos depois, ao apresentar seus conselhos para a formação de uma nova república na Córsega, Rousseau achou importante retomar suas advertências logo no prefácio: "Todas as coisas têm seus abusos frequentemente necessários, e os dos estabelecimentos políticos são tão próximos de sua instituição que quase não vale a pena realizá-la para vê-la degenerar tão depressa" (ROUSSEAU, 2003, p. 901). Entre o "pessimismo profilático" e o "otimismo vigilante", o filósofo nos aponta caminhos sem cair em ilusões.


Notas
1) Trata-se do XV Encontro Nacional de Filosofia da Anpof ocorrido em Curitiba em outubro de 2012, dentro do qual foi realizada a reunião do GT Rousseau e o Iluminismo.
2) Ver o Contrato Social, livro 2, capítulo X: “Há ainda na Europa um país capaz de legislação; é a ilha da Córsega. O valor e a constância com a qual esse bravo povo soube recobrar e defender sua liberdade mereceria bem que algum homem sábio lhe ensinasse a conservá-la. Eu tenho um pressentimento de que um dia essa pequena ilha espantará a Europa” (ROUSSEAU, 2003, p. 391).
3) Um bom exemplo disso são as discussões sobre Rousseau ser ou não um adepto do jusnaturalismo. Certos comentadores defendem a vinculação do pensamento político do genebrino à tradição do direito natural, de modo que, para ele, as leis positivas deveriam tomar as leis naturais como referência, ao passo que, segundo outros, Rousseau teria rompido totalmente com essa linha de reflexão. Apenas para citar alguns nomes que adentraram nesse debate, indico Charles E. Vaughan, Robert Derathé, Maurizio Viroli e Yves Vargas.
4) Nos capítulos do Contrato Social que seguem e complementam aquele que trata do Legislador, Rousseau escreve que a "natureza das coisas" comporta aspectos como a extensão e as qualidades geográficas do território do Estado, bem como o tamanho da população que o ocupa. Em vista disso, "O que torna a constituição de um Estado verdadeiramente sólida e durável é quando as conveniências são de tal modo observadas que as relações naturais e as leis estão sempre de acordo sobre os mesmos pontos, e que estas só fazem, por assim dizer, assegurar, acompanhar e retificar as outras. Mas se o Legislador, enganando-se em seu objetivo, toma um princípio diferente do que nasce da natureza das coisas; quando um tende à servidão e o outro à liberdade, um às riquezas e o outro à população, um à paz e o outro às conquistas, veremos as leis se enfraquecerem insensivelmente, a constituição se alterar, e o Estado não deixará de ser agitado até que seja destruído ou mudado, e que a natureza invencível tenha retomado seu império. (ROUSSEAU, 2003, p. 393).
5) Isso não significa, é claro, que tudo aquilo que é natural no ser humano tenha de desaparecer – com certeza, não é o caso do amor-de-si, da piedade ou da perfectibilidade, que permanecem na existência social e se manifestam em consonância com essa forma de vida em comunidade.


Referências

Durkheim, Émile. Montesquieu et Rousseau: précurseurs de la sociologie. Paris: Librairie Marcel Rivière et Cie, 1966.
MARTINS, Custódia A. A. Pessimismo e optimismo em Jean-Jacques Rousseau. Argumentos, ano 4, n. 8, p. 108-114, 2012. Disponível em: www.filosofia.ufc.br/argumentos
ROUSSEAU, J.-J. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2003. v. 3.
_________. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 1980. v. 4.
STAROBINSKI, J. A transparência e o obstáculo, seguido de Sete ensaios sobre Rousseau. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

sábado, 27 de outubro de 2012

Por que Emílio não é o cidadão republicano V



A partir da série de postagens e comentários feitos no fórum em torno do tema "Por que Emílio não é o cidadão republicano", preparei um texto que foi apresentado na PUC-SP e na Unifesp (campus de Guarulhos) em eventos realizados no mês de setembro, e que foi publicado pouco depois na edição n° 8 da revista Argumentos do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará. O artigo pode ser acessado no endereço: http://www.filosofia.ufc.br/argumentos
Há alguns dias, recebi os seguintes comentários encaminhados por André Queiroz de Lucena, mestrando em filosofia na Unifesp:

Sobre o Emílio, trarei uma constatação que sempre tive e pareceu reforçada nas palavras tuas, dadas na Unifesp e, depois, no artigo enviado.
Na verdade, quero sintetizá-las em uma citação do artigo: a formação do Emílio é endereçada a "um mundo profundamente insatisfatório, e consiste majoritariamente em aprender sobre ele somente para evitá-lo na medida do possível. Se Emílio não é um eremita, ele está longe de ser um cidadão" (PARRY, 2001, p. 260). (p. 142 do artigo)
Não nos parece, portanto, que no Emílio temos implícito um forte pessimismo sobre o mundo? Emílio é o autêntico e livre que vive em uma sociedade de simulacros e escravos. É curioso que temos, assim, um cidadão e homem bem singular: que quanto mais é instruído e livre, mais se torna alheio, solitário. Não deixo ainda de pensar isto sem recordar aquela divisa rousseauísta do 1º Discurso "Sou bárbaro nesta terra..." e, sobretudo, todo o percurso biográfico de Rousseau.
Isto admitido, a educação em Rousseau tem um caráter muito perturbador, pois trabalha conscientemente para despertar a ideia do educando cindido do jogo social. E se a sociedade corrompida não se emenda e é preciso trabalhar o indivíduo, seria o cultivo deste pessimismo o objetivo da obra?
Se realmente for assim, veria aqui um "escândalo" maior do que a profissão de fé do vigário, pois não estamos educando cidadãos, mas "bárbaros" livres e inadequados à trama social. Que cidadão do século XVIII e dos nossos tempos quer isto para seu filho bem nascido? O choque que a leitura do texto causa é, então, real. E a proposta de Rousseau tão ousada quanto original.

Eis minha resposta:
Obrigado pelos comentários, André.
Em relação ao que você diz, concordo que seria possível fazer uma interpretação pessimista do Emílio, principalmente se levarmos em conta os tristes eventos narrados na continuação inacabada do livro.
Ao longo de mais de vinte anos, o preceptor realiza um esforço admirável para preparar Emílio a fim de que ele seja capaz de se inserir em um mundo habitado por pessoas que, em diversos aspectos, são bem diferentes dele. Como você ressaltou, o resultado dessa educação é um homem autêntico e moralmente livre que precisa lidar com uma sociedade de simulacros e de sujeitos escravizados não somente do ponto de vista político, mas também porque passam toda a vida submetidos aos vícios da civilização, sendo arrastados pelo infindável cabo de guerra entre suas inclinações e seus deveres. Nesse contexto, alguém como Emílio teria dificuldades para encontrar pessoas com as quais pudesse se identificar, ou seja, que compartilhassem de seu tipo de sensibilidade e de compreensão intelectual e moral das coisas. Entretanto, ele não foi criado para viver sozinho. Por isso, a família que Emílio forma com Sofia é tão importante, pois nela o jovem encontraria a oportunidade de constituir um ambiente de relações humanas baseado nos princípios dentro dos quais ele foi educado. Sem dúvida, esse núcleo familiar foi posto duramente à prova por Rousseau na sequência da obra, tendo sofrido uma série de adversidades, a tal ponto que o protagonista preferiu abandoná-lo para se afastar das causas de sua infelicidade. Disso tudo seria viável retirar argumentos para uma leitura pessimista.
Por outro lado, acredito que a própria figura de Emílio nos dá fundamentos para outra linha de compreensão. Ainda que nem todas as expectativas geradas em torno de seus relacionamentos tenham se concretizado na narrativa deixada por Rousseau, o protagonista permanece como um exemplo de força moral, o que atesta o poder de sua educação. Ainda que os acontecimentos funestos ocorridos em sua família o tenham perturbado, ele logo conseguiu se recuperar e não se deixou abater novamente nem mesmo quando se viu submetido à escravidão. Até nessa condição que seria profundamente degradante para a grande maioria das pessoas, o comportamento virtuoso de Emílio fez com que ele se sobressaísse por qualidades como a coragem, a sinceridade e a sensatez, permitindo-lhe alterar sua situação e ajudar os que estavam sendo maltratados junto com ele.
Então, parece-me que a mensagem do Emílio não é unicamente de pessimismo frente a uma realidade social marcada por graves problemas muito difíceis de serem solucionados. Ela também aponta para uma via de leitura na qual a preservação da dignidade humana, em meio aos contínuos desafios que cada um encontra ao longo da vida, revela-se um valor de suma importância, algo que pode conferir um sentido crucial à existência. Ao atentarmos para isso, vemos Rousseau nos ensinando que conquanto as práticas e as instituições injustas presentes nos Estados modernos não possam ser transformadas em prol da liberdade política, tal como ele a concebia, o ser humano continua capaz de se tornar moralmente livre; essa seria uma conquista que, uma vez alcançada, nada nem ninguém poderia destruir. Portanto, trata-se de uma mensagem muito instigante baseada na crença no potencial do homem para elevar a si próprio, apesar de todos os riscos e obstáculos a serem vencidos durante o percurso.
A possibilidade de se extrair mensagens distintas do Emílio e das outras obras rousseaunianas demonstra, como Allan Bloom salientou, que seu autor soube captar bem a complexidade dos fenômenos humanos e o caráter problemático de quaisquer soluções oferecidas para as divisões que os atravessam. Diante de um mundo profundamente insatisfatório, Rousseau buscou imaginar caminhos que conduziriam a rumos diferentes daqueles seguidos pelas pessoas de seu tempo. Em determinados momentos, essa procura o levou a teorizar sobre uma comunidade política republicana habitada por cidadãos livres. Noutros, ele se dedicou às reflexões idiossincráticas de quem já se via completamente à margem do convívio social. No caso de Emílio, Bloom sugere, talvez tenhamos um meio termo, pois ele "está em algum lugar entre o cidadão do Contrato Social e o solitário dos Devaneios, faltando-lhe algo de cada um" (BLOOM, 1979, p. 28). Então, valeria a pena educar alguém como ele, que seria, de certo modo, um estranho entre seus pares? Se a resposta for negativa, quais opções restariam? Para Rousseau, a mais óbvia de todas era também a mais corriqueira, a saber, aquela que ele dizia servir para formar "homens de nosso século", ou seja, pessoas dotadas das qualidades típicas de uma época decadente e que não eram boas nem para si nem para outrem. Contudo, educar um indivíduo para não estar em contradição consigo mesmo, cujas ações fossem sempre coerentes com suas palavras, cujas convicções não desmoronassem frente aos inevitáveis percalços da vida, é um trabalho que requer as condições apropriadas e, igualmente, a tomada de uma decisão muito séria por parte dos pais. No prefácio do Emílio, o autor deixou clara sua opinião de que não adiantava tentar remediar a péssima pedagogia vigente com algumas medidas paliativas, já que o bem destas se esgotaria e o mal daquela não se curaria. Acerca da dúvida sobre a aplicabilidade de suas ideias, ele fez uma constatação que enfatiza o papel decisivo da família na educação dos jovens, lembrando algo que continua sendo pertinente para nosso próprio tempo: "Pais e mães, o que é realizável é o que vós desejais fazer. Devo eu ser responsável por vossa vontade?"

Renato Moscateli

Bibliografia citada
BLOOM, Allan. Introduction. In: ROUSSEAU, J.-J. Emile or On Education. Trad. Allan Bloom. Nova York: Basic Books, 1979.

domingo, 17 de junho de 2012

Por que Emílio não é o cidadão republicano IV


Fabrício, agradeço pelos novos comentários e questionamentos (Nota 1)
Algo que precisa ser compreendido logo de início é que, nas minhas postagens anteriores, quando eu diferencio as características de dois tipos de moralidade, ou seja, a apropriada aos cidadãos republicanos e a que cabe ao homem em geral, não estou concebendo o segundo tipo como se fosse o equivalente da capacidade básica e genérica que todos os seres humanos têm de desenvolver qualidades morais, uma capacidade que, nas obras de Rousseau, decorre da consciência, da razão e do amor de si (nota 2). Nesse sentido, os dois tipos de moralidade em questão são modalidades distintas que se constituem a partir dessa mesma base, mas de acordo com maneiras díspares de socialização. Num caso, temos as pessoas cuja consciência e cujas paixões foram modeladas pela educação cívica republicana, e no noutro temos um indivíduo (Emílio) cuja consciência e cujas paixões foram formadas para que ele pudesse estender seu "eu humano" sobre toda a humanidade (Nota 3).
Pois bem, você propõe que seria correto "afirmar que a moralidade do homem em geral fundamenta-se no solo metafísico, enquanto a do homem civil no jurídico; uma é natural e a outra artificial"; entretanto, eu não vejo que tais distinções funcionem exatamente desse modo. Ainda que se possa dizer que a moralidade tenha uma base natural na consciência inata – o "instinto divino" mencionado por Rousseau –, ela só se desenvolve, tanto em alguém como Emílio quanto no cidadão de uma dada república, por meio do convívio com os outros. Nas palavras de Michel Launay, "a voz imortal e celeste da consciência só toca as ouvidos e o coração do homem por intermédio de seu meio concreto, físico, político, social e cultural. A voz imortal e celeste que dorme no homem desde o estado de natureza (...) só desperta se o estado social permite-lhe adquirir forma e delicadeza” (Nota 4). Portanto, a gênese da moralidade sempre precisará não apenas daquilo que é natural, mas também dos estímulos oriundos da vida que se tem dentro de uma comunidade humana, isto é, de uma existência que é artificialmente construída pelas pessoas. No caso particular do cidadão republicano, sua consciência será informada por elementos que vão além do aspecto puramente jurídico, pois eles incluem a opinião pública, os valores morais e os costumes próprios de sua pátria, como eu já havia salientado em minhas outras postagens.
Isso torna problemática sua interpretação de que "no homem em geral a determinação das ações humanas são de ordem interior, a moralidade ali constituída é fruto da conjugação da razão com a consciência, enquanto que no homem civil se determina por uma ordem exterior, oriunda da vontade geral". Ora, em ambas as situações a moralidade é proveniente de componentes internos e externos, pois a consciência e a razão que existem no íntimo de cada ser humano necessitam de um contexto social para atingirem seu papel de guia. Nos Estados republicanos, esse contexto é fornecido pelas leis emanadas da vontade geral, bem como pelos bons costumes nutridos pelo povo, cujos ditames são incorporados pelos cidadãos. Nos Estados corrompidos, como vemos no Emílio, é mais difícil ser virtuoso, embora não impossível, desde que se consiga aprender a discernir entre o bem e o mal em meio aos "simulacros de leis", ao predomínio dos interesses particulares, ao exercício da violência pública e às instituições iníquas. Emílio é bem sucedido em alcançar esse objetivo graças ao trabalho constante realizado pelo preceptor para mediar os contatos do jovem com o mundo social.
 Tendo em vista esses pontos, o que eu posso dizer em relação às questões que você levantou é o seguinte. A moralidade adquirida por Emílio não é a referência (escala) para avaliar a correção da moralidade dos cidadãos das várias repúblicas, pois elas levam a resultados que são desiguais. Esta tende a unir indissoluvelmente as pessoas a uma dada coletividade política, ao passo que aquela tende situar o indivíduo no plano muito mais abrangente da humanidade. Logo, não faz sentido esperar que ambas possam coexistir harmonicamente nos mesmos sujeitos. Na primeira das Cartas escritas da montanha, Rousseau afirma que o patriotismo e a humanidade são "virtudes incompatíveis em sua energia, e sobretudo em um povo inteiro. O Legislador que visar as duas não atingirá nem uma nem a outra; esse acordo jamais foi visto e nunca se verá, porque ele é contrário à natureza e porque não se pode dar dois objetos à mesma paixão" (Nota 5). Consequentemente, o que causa a degeneração moral dos homens é uma socialização mal conduzida que nem os prepara para serem bons cidadãos de um Estado livre, nem homens virtuosos tais como Emílio, os quais conseguiriam manter sua liberdade moral em qualquer situação em que vivessem.
Finalmente, em função de toda a argumentação que venho apresentando desde a primeira postagem, reitero meu entendimento de que Emílio não foi formado para ser o cidadão republicano.

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Notas
1) Para acessá-los, basta clicar no link Comentários abaixo da postagem intitulada "Por que Emílio não é o cidadão republicano III".
2) Se buscássemos apoio no Segundo Discurso, poderíamos acrescentar também a piedade como uma paixão independente do amor de si; no Emílio, por outro lado, lemos que o amor de si é a fonte de todas as outras paixões, o que inclui a piedade.
2) Como o próprio Emílio diz em uma carta endereçada a seu antigo preceptor em Emílio e Sofia ou Os solitários. Ver ROUSSEAU. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 1980. v. 4, p. 883.
4) Launay, Michel. Rousseau. Paris: Presses Universitaires de France, 1968, p. 21. A esse respeito, ver também Maruyama, natalia. A contradição entre o homem e o cidadão. São Paulo: Humanitas; Fapesp, 2001, p. 113.
5) ROUSSEAU. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2003. v. 3, p. 706.


quarta-feira, 9 de maio de 2012

Por que Emílio não é o cidadão republicano III


Após a publicação de meu último texto, recebi a seguinte mensagem de Fabio Antônio da Silva:

Olá professor Renato Moscateli
Primeiramente gostaria de lhe agradecer publicamente, suas postagens neste blog, assim como suas demais publicações, têm me ajudado muito em minhas pesquisas sobre Rousseau.
No que diz respeito ao aspecto republicano da obra do pensador genebrino, da qual tenho me ocupado, tenho encontrado uma série de dificuldades na interpretação da filosofia de nosso autor. Os conceitos de Virtude e Liberdade, por exemplo, sempre tão presentes na tradição republicana, ganham, como suas últimas postagens têm mostrado, distinções que fazem com que identifiquemos uma virtude moral e uma civil e, da mesma forma, uma liberdade moral e uma civil.
Visto que o próprio Rousseau nos alerta no Emílio: “Quem quiser tratar separadamente política e moral nada entenderá de nenhuma das duas”. Como posso tratar separadamente do aspecto moral e do aspecto cívico sem operar uma cisão entre eles? Em Rousseau existe uma moral do homem e uma moral do cidadão?

Eis minha resposta:

Oi, Fabio
Fico muito satisfeito em saber que os meus trabalhos têm servido como referências úteis para a sua pesquisa.
Os textos que publiquei no Fórum de Filosofia do GIP a respeito do Emílio dão continuidade a uma discussão que comecei em um artigo publicado em 2008 na revista Princípios, cujo título é "A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau". O que eu tenho buscado mostrar é que o termo liberdade aparece com diferentes significados dentro das obras do genebrino, os quais precisam ser identificados com bastante atenção para evitar equívocos interpretativos.
Naquele artigo, ressaltei o emprego do termo "liberdade" em oposição a "instinto" dentro do Discurso sobre a origem da desigualdade, bem como o uso da oposição entre "liberdade natural" e "liberdade civil" (ou política) no contexto de obras como o Contrato Social. Se no primeiro caso o contraste serve para demarcar as características "metafísicas" do ser humano em comparação com os outros animais, no segundo ele é importante para entender as situações variáveis dos indivíduos do ponto de vista do direito político, seja no estado de natureza, seja na sociedade civil.
Já nos textos sobre o Emílio, meu foco reside na análise das especificidades da liberdade moral e da liberdade política. Ao fazer isso, meu objetivo não é, de modo algum, propor que há uma cisão entre moral e política no pensamento de Rousseau, pois, como você lembrou, ele mesmo enfatiza a necessidade de se considerar a ligação fundamental entre esses dois elementos. Na verdade, meu intuito é colocar em evidência a complexidade das relações entre eles no interior das obras rousseaunianas. Por isso, ao nos defrontarmos com os diversos tipos humanos presentes nelas, tais como o cidadão republicano ou o "selvagem educado para viver em sociedade", temos de investigar como a moral e a política se tocam em cada caso.
Em se tratando da virtude, em uma carta a M. de Franquières, Rousseau escreveu: "Essa palavra, virtude, significa força. Não há virtude sem combate, nem ela existe sem vitória. A virtude não consiste somente em ser justo, mas em sê-lo triunfando sobre suas paixões, reinando sobre seu próprio coração." Essa definição é semelhante à que aparece no Emílio, onde vemos que ser virtuoso equivale a saber vencer seus impulsos caprichosos e suas paixões desregradas, a fim de seguir a razão e a consciência, o que exige do indivíduo uma vontade forte que lhe permita comandar os ditames do coração e cumprir firmemente seus deveres para consigo mesmo e para com os outros, mantendo-se sempre em ordem. Assim, quando falamos de virtude no pensamento de Rousseau, essas ideias são a base para compreendê-la. Nesse sentido, toda a virtude tem, sem dúvida, uma dimensão moral, se entendermos por isso que ela engendra uma forma de conduta pela qual o sujeito adquire o controle consciente e bem dirigido sobre suas ações. Entretanto, ao falar de modalidades diferentes de virtude, isto é, a moral e a cívica, o que tenho em vista é deixar mais claro que o conceito desdobra-se e assume contornos diversos, pois Rousseau defende a concepção de que as qualidades que são as melhores para o homem em geral podem ser inconvenientes para o cidadão, e vice-versa. Por isso eu salientei que há distinções importantes entre a virtude moral "genérica" que Emílio é ensinado a cultivar e a virtude cívica "específica" que se espera dos membros de uma república. Esta faz com que as afeições e a lealdade dos indivíduos convirjam para um grupo definido de pessoas – os compatriotas – e para a associação política que ele constitui, ao passo que aquela ultrapassa essas limitações políticas e leva o sujeito a ver a si mesmo como sendo, basicamente, um exemplar do gênero humano.
A análise das consequências da moralidade cristã, como eu disse no meu texto, ajuda a visualizar melhor esse quadro. Rousseau certamente ficou bastante aborrecido com o fato de seus críticos não terem percebido a diferenciação que ele havia feito entre as questões religiosas puramente espirituais e as que dizem respeito ao governo dos povos. Ele destacou os problemas que a aceitação da doutrina do Evangelho traz no tocante ao comprometimento exigido dos cidadãos para com as instituições nacionais, embora também tivesse reconhecido que a religião cristã era a melhor para o gênero humano. Ainda na carta a M. de Franquières, Jean-Jacques exemplifica sua concepção de virtude recorrendo à figura de Lúcio Júnio Brutus, o lendário fundador da república romana, líder dos que depuseram o rei Tarquínio, o Soberbo, em 509 a.C. Eleito cônsul do novo regime, Brutus teve logo de enfrentar uma conspiração que pretendia restaurar a monarquia. Entre os conspiradores estavam seus filhos Tito e Tibério, os quais foram presos e condenados à morte, como traidores da república, pelo próprio cônsul. Sobre isso, Rousseau escreveu: "Brutus fazendo morrer seus filhos podia ser apenas justo. Mas Brutus era um pai terno; para fazer seu dever, ele dilacerou suas entranhas, e Brutus foi virtuoso.” Nos fragmentos intitulados “Da honra e da virtude” do vol. 3 das Oeuvres complètes, o filósofo retomou esse exemplo para repelir os “gracejos” feitos por Santo Agostinho a propósito do “grande e belo ato de virtude” de Brutus, demonstrando a distância que havia entre a moral cristã e aquela que devia animar os espíritos dos bons cidadãos: “Os Pais da Igreja não souberam ver o mal que faziam à sua causa difamando assim tudo o que a coragem e a honra haviam produzido de mais grandioso; à força de querer elevar a sublimidade do cristianismo, eles ensinaram os cristãos a se tornarem homens covardes”.
Vale lembrar que o genebrino não foi o primeiro autor a propor uma abordagem desse tipo sobre a virtude. Antes dele, Maquiavel e Montesquieu já tinham feito coisa semelhante. Nas obras do primeiro, o termo virtù é polissêmico e pode ser empregado seja para descrever os predicados de que o príncipe precisa para manter seu poder e garantir a soberania do Estado que ele governa, seja para se referir aos atributos que levam os cidadãos republicanos a conservar o corpo político, os quais estão voltados para a defesa e a exaltação da pátria e da liberdade, inclusive no tocante à disposição para pegar em armas e lutar em nome da república. Em ambos os casos, Maquiavel mostra que essa virtù política não coincide com a virtude moral que, em seu contexto histórico, caracterizava-se principalmente por qualidades cristãs como o amor ao próximo e a mansidão. Montesquieu, por sua vez, havia indicado a virtude como sendo o princípio que mobiliza o governo republicano, tendo sido criticado por aqueles que acreditavam que a virtude também era necessária às monarquias. Em resposta a tais recriminações, ele acrescentou uma advertência ao início d'O Espírito das Leis para esclarecer o conceito de virtude que estava utilizando, o qual significava o amor à pátria e à igualdade: "não é absolutamente uma virtude moral, nem uma virtude cristã, é a virtude política". O autor completa sua explicação afirmando que o homem de bem que possui essa virtude política é aquele que ama as leis de seu país e age movido por esse sentimento, algo sumamente essencial nas repúblicas, e por isso ele não é igual ao homem de bem cristão que pode existir em qualquer espécie de Estado. No Contrato Social (livro 3, capítulo IV), Rousseau recupera o conceito de Montesquieu, lamentando apenas que ele não tivesse percebido que a virtude política é o princípio basilar de todos os Estados bem constituídos, ou seja, onde a autoridade soberana pertence ao povo, mesmo que a forma do governo varie.
Logo, penso que seja viável enxergar a questão das virtudes distintas em Rousseau sem cair em uma interpretação que separe a moral e a política, desde que se perceba adequadamente que as características da moralidade a ser seguida pelos cidadãos de uma república não podem ser idênticas, em todos os pontos, àquela apropriada ao homem em geral, o que conduz aos gêneros díspares de educação apresentados pelo genebrino, cada qual condizente com um tipo de pessoa que se pretende formar.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Por que Emílio não é o cidadão republicano II


Obrigado pelas questões, Fabrício.*
Em primeiro lugar, concordo com você sobre as dificuldades relacionadas à busca por eixos de leitura que possam ser traçados para o entendimento das obras de Rousseau. Penso que é válido e necessário fazer o cotejo entre os conceitos que foram apresentados pelo filósofo nos muitos textos publicados ao longo das décadas de sua atividade intelectual, à procura não apenas das continuidades que existem entre eles, mas também das modificações que possam ser encontradas em suas diferentes exposições. Acredito que esse esforço deve fazer jus à complexidade da reflexão de Jean-Jacques, pois ele tentou fornecer soluções apropriadas para os problemas distintos que abordou. Assim, não é adequado desconsiderar a especificidade de tais soluções em prol de uma unidade que ignore as múltiplas facetas presentes em seus textos, entre elas a tensão entre o ideal de uma sociedade republicana cujos membros realizam-se somente no convívio constante, por um lado, e as figuras de sujeitos solitários que acham sua felicidade no isolamento (o homem selvagem e o próprio Rousseau em certos momentos de sua vida), por outro.
No tocante ao pensamento político de Rousseau, por exemplo, encontramos em seus escritos a ideia de que cada conjuntura demanda um determinado tipo de ação mais propício, ou seja, que tem melhores chances de produzir bons resultados. Existem momentos especiais na vida dos povos em que a fundação de um Estado legítimo é viável, outros nos quais o máximo que se pode fazer é reformar as leis e as instituições para alcançar algum aprimoramento na ordem pública, e outros ainda em que não há mais como reverter o estado avançado de corrupção já instalado. Na segunda metade do séc. XVIII, tais eram as situações da Córsega, da Polônia e da França, respectivamente. Se no primeiro caso o trabalho do Legislador é requerido para formar um corpo político dotado de um caráter nacional, cujos membros têm condições de desfrutar da liberdade civil, no último essa opção não está mais disponível, e o que resta é criar espaços privados onde os indivíduos consigam se proteger, pelo menos em alguma medida, dos males vigentes na sociedade. Esta alternativa é a que vemos no núcleo familiar campestre de Clarens descrito em A Nova Heloísa, um ambiente semelhante ao que o preceptor de Emílio esperava que o jovem constituísse ao lado de Sofia. É claro que se pode tentar implementar uma solução menos apropriada a um dado contexto, mas isso certamente aumentará muito as chances de fracasso, o que é bem visível nos esforços desastrosos de Robespierre e de outros revolucionários – com seu "despotismo da liberdade" – para colocar em prática as ideias de Rousseau, apesar das advertências do filósofo quanto aos perigos dessa espécie de intervenção em um Estado com as características da monarquia francesa.
Frente a tudo isso, reitero o que escrevi em meu texto sobre o lugar do Emílio no conjunto das obras de Rousseau. Não vejo fundamentos para se interpretar o livro como sendo a proposta do modelo educacional voltado à formação dos cidadãos republicanos necessários ao tipo de regime político apresentado no Contrato Social, nem para que a ordem de publicação dessas obras justifique tal interpretação. De acordo com a cronologia presente no primeiro volume das Oeuvres complètes de Rousseau (edição da Pléiade), Jean-Jacques mandou o manuscrito do Emílio a Duchesne, que começou a imprimi-lo em outubro de 1761, e em novembro o manuscrito do Contrato Social chegou às mãos de Marc-Michel Rey. No início de abril de 1762, a impressão do Contrato ficou pronta, e em maio começaram a circular os exemplares do Emílio. Quanto à ordem de publicação pretendida por Rousseau, reproduzo o que ele próprio escreveu em uma carta a Rey datada de nove de agosto de 1761: "Meu tratado de direito político está revisado e pronto para vir a público (...). Como esse livro é citado no tratado da educação, convém que ele apareça antes". Realmente, o livro 5 do Emílio contém um sumário dos temas que seriam abordados no Contrato Social, o qual foi incluído para servir de referência às observações que o preceptor e seu aluno iriam fazer durante suas viagens pela Europa, analisando as instituições políticas de diversos países.
Em relação à distinção entre a liberdade política e a moral, a qual ressaltei em meu texto, trata-se de uma questão conceitual que precisa ser vista com cuidado. Embora as duas formas de liberdade possam ser reunidas, não me parece que uma seja, necessariamente, condição para a existência da outra. A liberdade política tem um âmbito coletivo, pois sua existência depende intrinsecamente da maneira como a sociedade civil está organizada, a fim de que seus membros sejam livres porque participam da soberania e obedecem somente à vontade geral – que é a deles –, e não ao arbítrio particular de quem quer que seja. A liberdade moral, por sua vez, possui um âmbito mais individual, já que consiste na capacidade de o sujeito agir virtuosamente, guiando-se por sua própria razão e sua consciência, sem se deixar manipular pelas simples opiniões alheias. A obtenção de tal liberdade não depende inerentemente de se viver em um Estado legítimo – como eu busquei mostrar, Emílio é dotado de liberdade moral mesmo não habitando um país onde existe liberdade política –, nem sequer da posição social da pessoa, pois é algo que, para citar dois exemplos históricos, estaria ao alcance tanto de um imperador, como Marco Aurélio, quanto de um escravo, como Epicteto. Consequentemente, os indivíduos que tiverem a sorte de nascer em uma república receberão do Estado a liberdade política como um direito civil, mas a conquista da liberdade moral é um desenvolvimento que cada um deles terá de atingir por meio de um esforço pessoal, esforço que poderá ser facilitado, é claro, pelo convívio em uma sociedade bem ordenada.
      Sem dúvida, Rousseau mostra que a formação moral adequada dos cidadãos republicanos é um ponto fundamental para a manutenção do corpo político, e ela precisa começar desde a fundação da república. Porém, como eu argumentei, não é educando os indivíduos como Emílio que se conseguirá o melhor resultado nesse sentido, e isso fica muito evidente quando observamos o tipo de pessoa que ele se torna ao atingir a idade adulta. Então, penso que atribuir o título de cidadão a Emílio significa utilizar essa palavra num sentido fraco, como mero sinônimo para alguém apto ao convívio social, o que esvazia o conceito rousseauniano de cidadania de grande parte de seu conteúdo propriamente político. Isso porque a ligação entre o cidadão e sua pátria não parece algo que o filósofo de Genebra tomaria por acessório. Muito pelo contrário, trata-se de um elo profundamente constitutivo que falta a Emílio. Ele foi criado para viver em sociedade, mas os relacionamentos que monopolizam seus interesses são de cunho privado, isto é, a amizade com seu preceptor e os laços familiares que constrói a partir de seu amor por Sofia. Quanto aos assuntos de caráter público, cujo teor refere-se às questões políticas que afetam a sociedade como um todo, Emílio não demonstra qualquer preocupação em especial com elas e nem mesmo é incentivado pelo preceptor a envolver-se nelas, salvo quando fosse diretamente convocado para isso. Sua virtude moral não tem o apelo necessário para fazê-lo interessar-se pela participação política, pois é à virtude cívica que cabe inspirar os indivíduos a exercê-la como uma das atividades principais – se não a maior – de seu dia a dia.
Essa virtude é difundida pela educação pública na qual os jovens cidadãos são preparados para zelar por seus direitos e deveres como participantes de um corpo político específico. Como Rousseau diz no prefácio de Narciso, os costumes são a moral do povo, de modo que seus membros têm de ser instruídos, desde a infância e conjuntamente, nos costumes e tradições particulares de sua pátria. Nas Considerações sobre o governo da Polônia, ele escreveu: "Eu quero que ao aprender a ler, ele [o polonês] leia coisas de seu país; que aos dez anos ele conheça todas as suas produções; aos doze, todas as suas províncias, todos os seus caminhos, todas as suas cidades; que aos quinze ele saiba toda a sua história; aos dezesseis, todas as suas leis, que não exista na Polônia nenhuma bela ação nem nenhum homem ilustre pelos quais ele não tenha a memória e o coração preenchidos, e dos quais não possa falar a qualquer instante". Em suma, essa é a espécie de educação mais apropriada para dar aos cidadãos a base moral de que eles precisam. Onde houver condições de possibilidade para uma sociedade justa, essa educação é a que deve ser praticada, e não a ministrada a Emílio. 


* Este texto é uma resposta às observações feitas por Fabrício David de Queiroz; para vê-las, basta clicar no link Comentários logo abaixo da postagem "Por que Emílio não é o cidadão republicano".