Após a publicação de meu último texto, recebi a seguinte mensagem de Fabio Antônio da Silva:
Olá professor Renato Moscateli
Primeiramente gostaria de lhe
agradecer publicamente, suas postagens neste blog, assim como suas demais
publicações, têm me ajudado muito em minhas pesquisas sobre Rousseau.
No que diz respeito ao aspecto
republicano da obra do pensador genebrino, da qual tenho me ocupado, tenho
encontrado uma série de dificuldades na interpretação da filosofia de nosso
autor. Os conceitos de Virtude e Liberdade, por exemplo, sempre tão presentes
na tradição republicana, ganham, como suas últimas postagens têm mostrado,
distinções que fazem com que identifiquemos uma virtude moral e uma civil e, da
mesma forma, uma liberdade moral e uma civil.
Visto que o próprio Rousseau nos
alerta no Emílio: “Quem quiser tratar
separadamente política e moral nada entenderá de nenhuma das duas”. Como posso
tratar separadamente do aspecto moral e do aspecto cívico sem operar uma cisão
entre eles? Em Rousseau existe uma moral do homem e uma moral do cidadão?
Eis minha resposta:
Oi, Fabio
Fico muito satisfeito em saber que os
meus trabalhos têm servido como referências úteis para a sua pesquisa.
Os textos que publiquei no Fórum de
Filosofia do GIP a respeito do Emílio dão
continuidade a uma discussão que comecei em um artigo publicado em 2008 na
revista Princípios, cujo título é
"A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau". O que
eu tenho buscado mostrar é que o termo liberdade aparece com diferentes
significados dentro das obras do genebrino, os quais precisam ser identificados
com bastante atenção para evitar equívocos interpretativos.
Naquele artigo, ressaltei o emprego do
termo "liberdade" em oposição a "instinto" dentro do Discurso sobre a origem da desigualdade,
bem como o uso da oposição entre "liberdade natural" e
"liberdade civil" (ou política) no contexto de obras como o Contrato Social. Se no primeiro caso o
contraste serve para demarcar as características "metafísicas" do ser
humano em comparação com os outros animais, no segundo ele é importante para
entender as situações variáveis dos indivíduos do ponto de vista do direito
político, seja no estado de natureza, seja na sociedade civil.
Já nos textos sobre o Emílio, meu foco reside na análise das
especificidades da liberdade moral e da liberdade política. Ao fazer isso, meu
objetivo não é, de modo algum, propor que há uma cisão entre moral e política
no pensamento de Rousseau, pois, como você lembrou, ele mesmo enfatiza a
necessidade de se considerar a ligação fundamental entre esses dois elementos. Na
verdade, meu intuito é colocar em evidência a complexidade das relações entre
eles no interior das obras rousseaunianas. Por isso, ao nos defrontarmos com os
diversos tipos humanos presentes nelas, tais como o cidadão republicano ou o
"selvagem educado para viver em sociedade", temos de investigar como
a moral e a política se tocam em cada caso.
Em se tratando da virtude, em uma carta
a M. de Franquières, Rousseau escreveu: "Essa
palavra, virtude, significa força.
Não há virtude sem combate, nem ela existe sem vitória. A virtude não consiste
somente em ser justo, mas em sê-lo triunfando sobre suas paixões, reinando
sobre seu próprio coração." Essa definição é semelhante à que aparece no Emílio, onde vemos que ser virtuoso
equivale a saber vencer seus impulsos caprichosos e suas paixões desregradas, a
fim de seguir a razão e a consciência, o que exige do indivíduo uma vontade
forte que lhe permita comandar os ditames do coração e cumprir firmemente seus
deveres para consigo mesmo e para com os outros, mantendo-se sempre em ordem.
Assim, quando falamos de virtude no pensamento de Rousseau, essas ideias são a
base para compreendê-la. Nesse sentido, toda a virtude tem, sem dúvida, uma
dimensão moral, se entendermos por isso que ela engendra uma forma de conduta
pela qual o sujeito adquire o controle consciente e bem dirigido sobre suas
ações. Entretanto, ao falar de modalidades diferentes de virtude, isto é, a
moral e a cívica, o que tenho em vista é deixar mais claro que o conceito
desdobra-se e assume contornos diversos, pois Rousseau defende a concepção de
que as qualidades que são as melhores para o homem em geral podem ser inconvenientes
para o cidadão, e vice-versa. Por isso eu salientei que há distinções
importantes entre a virtude moral "genérica" que Emílio é ensinado a
cultivar e a virtude cívica "específica" que se espera dos membros de
uma república. Esta faz com que as afeições e a lealdade dos indivíduos convirjam
para um grupo definido de pessoas – os compatriotas – e para a associação
política que ele constitui, ao passo que aquela ultrapassa essas limitações
políticas e leva o sujeito a ver a si mesmo como sendo, basicamente, um
exemplar do gênero humano.
A análise das consequências
da moralidade cristã, como eu disse no meu texto, ajuda a visualizar melhor
esse quadro. Rousseau certamente ficou bastante aborrecido com o fato de seus
críticos não terem percebido a diferenciação que ele havia feito entre as
questões religiosas puramente espirituais e as que dizem respeito ao governo
dos povos. Ele destacou os problemas que a aceitação da doutrina do Evangelho
traz no tocante ao comprometimento exigido dos cidadãos para com as
instituições nacionais, embora também tivesse reconhecido que a religião cristã
era a melhor para o gênero humano. Ainda na carta a M. de
Franquières, Jean-Jacques exemplifica sua concepção de virtude recorrendo à
figura de Lúcio Júnio Brutus, o lendário fundador da república romana, líder
dos que depuseram o rei Tarquínio, o Soberbo, em
509 a.C. Eleito cônsul do novo regime, Brutus teve logo de enfrentar uma
conspiração que pretendia restaurar a monarquia. Entre os conspiradores estavam
seus filhos Tito e Tibério, os quais foram
presos e condenados à morte, como traidores da república, pelo próprio cônsul.
Sobre isso, Rousseau escreveu: "Brutus fazendo morrer seus filhos podia
ser apenas justo. Mas Brutus era um pai terno; para fazer seu dever, ele
dilacerou suas entranhas, e Brutus foi virtuoso.” Nos fragmentos
intitulados “Da honra e da virtude” do vol. 3 das Oeuvres complètes, o
filósofo retomou esse exemplo para repelir os “gracejos” feitos por Santo
Agostinho a propósito do “grande e belo ato de virtude”
de Brutus, demonstrando a distância que
havia entre a moral cristã e aquela que devia animar os espíritos dos bons
cidadãos: “Os Pais da Igreja não souberam ver o mal que faziam à sua causa
difamando assim tudo o que a coragem e a honra haviam produzido de mais
grandioso; à força de querer elevar a sublimidade do cristianismo, eles
ensinaram os cristãos a se tornarem homens covardes”.
Vale lembrar que o genebrino não foi o
primeiro autor a propor uma abordagem desse tipo sobre a virtude. Antes dele,
Maquiavel e Montesquieu já tinham feito coisa semelhante. Nas obras do
primeiro, o termo virtù é polissêmico
e pode ser empregado seja para descrever os predicados de que o príncipe
precisa para manter seu poder e garantir a soberania do Estado que ele governa,
seja para se referir aos atributos que levam os cidadãos republicanos a
conservar o corpo político, os quais estão voltados para a defesa e a exaltação
da pátria e da liberdade, inclusive no tocante à disposição para pegar em armas
e lutar em nome da república. Em ambos os casos, Maquiavel mostra que essa virtù política não coincide com a virtude moral que, em seu contexto histórico,
caracterizava-se principalmente por qualidades cristãs como o amor ao próximo e
a mansidão. Montesquieu, por sua vez, havia indicado a virtude como sendo o
princípio que mobiliza o governo republicano, tendo sido criticado por aqueles
que acreditavam que a virtude também era necessária às monarquias. Em resposta
a tais recriminações, ele acrescentou uma advertência ao início d'O Espírito das Leis para esclarecer o
conceito de virtude que estava utilizando, o qual significava o amor à pátria e
à igualdade: "não é absolutamente uma virtude moral, nem uma virtude
cristã, é a virtude política". O
autor completa sua explicação afirmando que o homem de bem que possui essa
virtude política é aquele que ama as leis de seu país e age movido por esse
sentimento, algo sumamente essencial nas repúblicas, e por isso ele não é igual
ao homem de bem cristão que pode existir em qualquer espécie de Estado. No Contrato Social (livro 3, capítulo IV),
Rousseau recupera o conceito de Montesquieu, lamentando apenas que ele não
tivesse percebido que a virtude política é o princípio basilar de todos os
Estados bem constituídos, ou seja, onde a autoridade soberana pertence ao povo,
mesmo que a forma do governo varie.
Logo, penso que seja viável enxergar a
questão das virtudes distintas em Rousseau sem cair em uma interpretação que
separe a moral e a política, desde que se perceba adequadamente que as
características da moralidade a ser seguida pelos cidadãos de uma república não
podem ser idênticas, em todos os pontos, àquela apropriada ao homem em geral, o
que conduz aos gêneros díspares de educação apresentados pelo genebrino, cada
qual condizente com um tipo de pessoa que se pretende formar.