segunda-feira, 7 de maio de 2012

Por que Emílio não é o cidadão republicano II


Obrigado pelas questões, Fabrício.*
Em primeiro lugar, concordo com você sobre as dificuldades relacionadas à busca por eixos de leitura que possam ser traçados para o entendimento das obras de Rousseau. Penso que é válido e necessário fazer o cotejo entre os conceitos que foram apresentados pelo filósofo nos muitos textos publicados ao longo das décadas de sua atividade intelectual, à procura não apenas das continuidades que existem entre eles, mas também das modificações que possam ser encontradas em suas diferentes exposições. Acredito que esse esforço deve fazer jus à complexidade da reflexão de Jean-Jacques, pois ele tentou fornecer soluções apropriadas para os problemas distintos que abordou. Assim, não é adequado desconsiderar a especificidade de tais soluções em prol de uma unidade que ignore as múltiplas facetas presentes em seus textos, entre elas a tensão entre o ideal de uma sociedade republicana cujos membros realizam-se somente no convívio constante, por um lado, e as figuras de sujeitos solitários que acham sua felicidade no isolamento (o homem selvagem e o próprio Rousseau em certos momentos de sua vida), por outro.
No tocante ao pensamento político de Rousseau, por exemplo, encontramos em seus escritos a ideia de que cada conjuntura demanda um determinado tipo de ação mais propício, ou seja, que tem melhores chances de produzir bons resultados. Existem momentos especiais na vida dos povos em que a fundação de um Estado legítimo é viável, outros nos quais o máximo que se pode fazer é reformar as leis e as instituições para alcançar algum aprimoramento na ordem pública, e outros ainda em que não há mais como reverter o estado avançado de corrupção já instalado. Na segunda metade do séc. XVIII, tais eram as situações da Córsega, da Polônia e da França, respectivamente. Se no primeiro caso o trabalho do Legislador é requerido para formar um corpo político dotado de um caráter nacional, cujos membros têm condições de desfrutar da liberdade civil, no último essa opção não está mais disponível, e o que resta é criar espaços privados onde os indivíduos consigam se proteger, pelo menos em alguma medida, dos males vigentes na sociedade. Esta alternativa é a que vemos no núcleo familiar campestre de Clarens descrito em A Nova Heloísa, um ambiente semelhante ao que o preceptor de Emílio esperava que o jovem constituísse ao lado de Sofia. É claro que se pode tentar implementar uma solução menos apropriada a um dado contexto, mas isso certamente aumentará muito as chances de fracasso, o que é bem visível nos esforços desastrosos de Robespierre e de outros revolucionários – com seu "despotismo da liberdade" – para colocar em prática as ideias de Rousseau, apesar das advertências do filósofo quanto aos perigos dessa espécie de intervenção em um Estado com as características da monarquia francesa.
Frente a tudo isso, reitero o que escrevi em meu texto sobre o lugar do Emílio no conjunto das obras de Rousseau. Não vejo fundamentos para se interpretar o livro como sendo a proposta do modelo educacional voltado à formação dos cidadãos republicanos necessários ao tipo de regime político apresentado no Contrato Social, nem para que a ordem de publicação dessas obras justifique tal interpretação. De acordo com a cronologia presente no primeiro volume das Oeuvres complètes de Rousseau (edição da Pléiade), Jean-Jacques mandou o manuscrito do Emílio a Duchesne, que começou a imprimi-lo em outubro de 1761, e em novembro o manuscrito do Contrato Social chegou às mãos de Marc-Michel Rey. No início de abril de 1762, a impressão do Contrato ficou pronta, e em maio começaram a circular os exemplares do Emílio. Quanto à ordem de publicação pretendida por Rousseau, reproduzo o que ele próprio escreveu em uma carta a Rey datada de nove de agosto de 1761: "Meu tratado de direito político está revisado e pronto para vir a público (...). Como esse livro é citado no tratado da educação, convém que ele apareça antes". Realmente, o livro 5 do Emílio contém um sumário dos temas que seriam abordados no Contrato Social, o qual foi incluído para servir de referência às observações que o preceptor e seu aluno iriam fazer durante suas viagens pela Europa, analisando as instituições políticas de diversos países.
Em relação à distinção entre a liberdade política e a moral, a qual ressaltei em meu texto, trata-se de uma questão conceitual que precisa ser vista com cuidado. Embora as duas formas de liberdade possam ser reunidas, não me parece que uma seja, necessariamente, condição para a existência da outra. A liberdade política tem um âmbito coletivo, pois sua existência depende intrinsecamente da maneira como a sociedade civil está organizada, a fim de que seus membros sejam livres porque participam da soberania e obedecem somente à vontade geral – que é a deles –, e não ao arbítrio particular de quem quer que seja. A liberdade moral, por sua vez, possui um âmbito mais individual, já que consiste na capacidade de o sujeito agir virtuosamente, guiando-se por sua própria razão e sua consciência, sem se deixar manipular pelas simples opiniões alheias. A obtenção de tal liberdade não depende inerentemente de se viver em um Estado legítimo – como eu busquei mostrar, Emílio é dotado de liberdade moral mesmo não habitando um país onde existe liberdade política –, nem sequer da posição social da pessoa, pois é algo que, para citar dois exemplos históricos, estaria ao alcance tanto de um imperador, como Marco Aurélio, quanto de um escravo, como Epicteto. Consequentemente, os indivíduos que tiverem a sorte de nascer em uma república receberão do Estado a liberdade política como um direito civil, mas a conquista da liberdade moral é um desenvolvimento que cada um deles terá de atingir por meio de um esforço pessoal, esforço que poderá ser facilitado, é claro, pelo convívio em uma sociedade bem ordenada.
      Sem dúvida, Rousseau mostra que a formação moral adequada dos cidadãos republicanos é um ponto fundamental para a manutenção do corpo político, e ela precisa começar desde a fundação da república. Porém, como eu argumentei, não é educando os indivíduos como Emílio que se conseguirá o melhor resultado nesse sentido, e isso fica muito evidente quando observamos o tipo de pessoa que ele se torna ao atingir a idade adulta. Então, penso que atribuir o título de cidadão a Emílio significa utilizar essa palavra num sentido fraco, como mero sinônimo para alguém apto ao convívio social, o que esvazia o conceito rousseauniano de cidadania de grande parte de seu conteúdo propriamente político. Isso porque a ligação entre o cidadão e sua pátria não parece algo que o filósofo de Genebra tomaria por acessório. Muito pelo contrário, trata-se de um elo profundamente constitutivo que falta a Emílio. Ele foi criado para viver em sociedade, mas os relacionamentos que monopolizam seus interesses são de cunho privado, isto é, a amizade com seu preceptor e os laços familiares que constrói a partir de seu amor por Sofia. Quanto aos assuntos de caráter público, cujo teor refere-se às questões políticas que afetam a sociedade como um todo, Emílio não demonstra qualquer preocupação em especial com elas e nem mesmo é incentivado pelo preceptor a envolver-se nelas, salvo quando fosse diretamente convocado para isso. Sua virtude moral não tem o apelo necessário para fazê-lo interessar-se pela participação política, pois é à virtude cívica que cabe inspirar os indivíduos a exercê-la como uma das atividades principais – se não a maior – de seu dia a dia.
Essa virtude é difundida pela educação pública na qual os jovens cidadãos são preparados para zelar por seus direitos e deveres como participantes de um corpo político específico. Como Rousseau diz no prefácio de Narciso, os costumes são a moral do povo, de modo que seus membros têm de ser instruídos, desde a infância e conjuntamente, nos costumes e tradições particulares de sua pátria. Nas Considerações sobre o governo da Polônia, ele escreveu: "Eu quero que ao aprender a ler, ele [o polonês] leia coisas de seu país; que aos dez anos ele conheça todas as suas produções; aos doze, todas as suas províncias, todos os seus caminhos, todas as suas cidades; que aos quinze ele saiba toda a sua história; aos dezesseis, todas as suas leis, que não exista na Polônia nenhuma bela ação nem nenhum homem ilustre pelos quais ele não tenha a memória e o coração preenchidos, e dos quais não possa falar a qualquer instante". Em suma, essa é a espécie de educação mais apropriada para dar aos cidadãos a base moral de que eles precisam. Onde houver condições de possibilidade para uma sociedade justa, essa educação é a que deve ser praticada, e não a ministrada a Emílio. 


* Este texto é uma resposta às observações feitas por Fabrício David de Queiroz; para vê-las, basta clicar no link Comentários logo abaixo da postagem "Por que Emílio não é o cidadão republicano".

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