quarta-feira, 9 de maio de 2012

Por que Emílio não é o cidadão republicano III


Após a publicação de meu último texto, recebi a seguinte mensagem de Fabio Antônio da Silva:

Olá professor Renato Moscateli
Primeiramente gostaria de lhe agradecer publicamente, suas postagens neste blog, assim como suas demais publicações, têm me ajudado muito em minhas pesquisas sobre Rousseau.
No que diz respeito ao aspecto republicano da obra do pensador genebrino, da qual tenho me ocupado, tenho encontrado uma série de dificuldades na interpretação da filosofia de nosso autor. Os conceitos de Virtude e Liberdade, por exemplo, sempre tão presentes na tradição republicana, ganham, como suas últimas postagens têm mostrado, distinções que fazem com que identifiquemos uma virtude moral e uma civil e, da mesma forma, uma liberdade moral e uma civil.
Visto que o próprio Rousseau nos alerta no Emílio: “Quem quiser tratar separadamente política e moral nada entenderá de nenhuma das duas”. Como posso tratar separadamente do aspecto moral e do aspecto cívico sem operar uma cisão entre eles? Em Rousseau existe uma moral do homem e uma moral do cidadão?

Eis minha resposta:

Oi, Fabio
Fico muito satisfeito em saber que os meus trabalhos têm servido como referências úteis para a sua pesquisa.
Os textos que publiquei no Fórum de Filosofia do GIP a respeito do Emílio dão continuidade a uma discussão que comecei em um artigo publicado em 2008 na revista Princípios, cujo título é "A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau". O que eu tenho buscado mostrar é que o termo liberdade aparece com diferentes significados dentro das obras do genebrino, os quais precisam ser identificados com bastante atenção para evitar equívocos interpretativos.
Naquele artigo, ressaltei o emprego do termo "liberdade" em oposição a "instinto" dentro do Discurso sobre a origem da desigualdade, bem como o uso da oposição entre "liberdade natural" e "liberdade civil" (ou política) no contexto de obras como o Contrato Social. Se no primeiro caso o contraste serve para demarcar as características "metafísicas" do ser humano em comparação com os outros animais, no segundo ele é importante para entender as situações variáveis dos indivíduos do ponto de vista do direito político, seja no estado de natureza, seja na sociedade civil.
Já nos textos sobre o Emílio, meu foco reside na análise das especificidades da liberdade moral e da liberdade política. Ao fazer isso, meu objetivo não é, de modo algum, propor que há uma cisão entre moral e política no pensamento de Rousseau, pois, como você lembrou, ele mesmo enfatiza a necessidade de se considerar a ligação fundamental entre esses dois elementos. Na verdade, meu intuito é colocar em evidência a complexidade das relações entre eles no interior das obras rousseaunianas. Por isso, ao nos defrontarmos com os diversos tipos humanos presentes nelas, tais como o cidadão republicano ou o "selvagem educado para viver em sociedade", temos de investigar como a moral e a política se tocam em cada caso.
Em se tratando da virtude, em uma carta a M. de Franquières, Rousseau escreveu: "Essa palavra, virtude, significa força. Não há virtude sem combate, nem ela existe sem vitória. A virtude não consiste somente em ser justo, mas em sê-lo triunfando sobre suas paixões, reinando sobre seu próprio coração." Essa definição é semelhante à que aparece no Emílio, onde vemos que ser virtuoso equivale a saber vencer seus impulsos caprichosos e suas paixões desregradas, a fim de seguir a razão e a consciência, o que exige do indivíduo uma vontade forte que lhe permita comandar os ditames do coração e cumprir firmemente seus deveres para consigo mesmo e para com os outros, mantendo-se sempre em ordem. Assim, quando falamos de virtude no pensamento de Rousseau, essas ideias são a base para compreendê-la. Nesse sentido, toda a virtude tem, sem dúvida, uma dimensão moral, se entendermos por isso que ela engendra uma forma de conduta pela qual o sujeito adquire o controle consciente e bem dirigido sobre suas ações. Entretanto, ao falar de modalidades diferentes de virtude, isto é, a moral e a cívica, o que tenho em vista é deixar mais claro que o conceito desdobra-se e assume contornos diversos, pois Rousseau defende a concepção de que as qualidades que são as melhores para o homem em geral podem ser inconvenientes para o cidadão, e vice-versa. Por isso eu salientei que há distinções importantes entre a virtude moral "genérica" que Emílio é ensinado a cultivar e a virtude cívica "específica" que se espera dos membros de uma república. Esta faz com que as afeições e a lealdade dos indivíduos convirjam para um grupo definido de pessoas – os compatriotas – e para a associação política que ele constitui, ao passo que aquela ultrapassa essas limitações políticas e leva o sujeito a ver a si mesmo como sendo, basicamente, um exemplar do gênero humano.
A análise das consequências da moralidade cristã, como eu disse no meu texto, ajuda a visualizar melhor esse quadro. Rousseau certamente ficou bastante aborrecido com o fato de seus críticos não terem percebido a diferenciação que ele havia feito entre as questões religiosas puramente espirituais e as que dizem respeito ao governo dos povos. Ele destacou os problemas que a aceitação da doutrina do Evangelho traz no tocante ao comprometimento exigido dos cidadãos para com as instituições nacionais, embora também tivesse reconhecido que a religião cristã era a melhor para o gênero humano. Ainda na carta a M. de Franquières, Jean-Jacques exemplifica sua concepção de virtude recorrendo à figura de Lúcio Júnio Brutus, o lendário fundador da república romana, líder dos que depuseram o rei Tarquínio, o Soberbo, em 509 a.C. Eleito cônsul do novo regime, Brutus teve logo de enfrentar uma conspiração que pretendia restaurar a monarquia. Entre os conspiradores estavam seus filhos Tito e Tibério, os quais foram presos e condenados à morte, como traidores da república, pelo próprio cônsul. Sobre isso, Rousseau escreveu: "Brutus fazendo morrer seus filhos podia ser apenas justo. Mas Brutus era um pai terno; para fazer seu dever, ele dilacerou suas entranhas, e Brutus foi virtuoso.” Nos fragmentos intitulados “Da honra e da virtude” do vol. 3 das Oeuvres complètes, o filósofo retomou esse exemplo para repelir os “gracejos” feitos por Santo Agostinho a propósito do “grande e belo ato de virtude” de Brutus, demonstrando a distância que havia entre a moral cristã e aquela que devia animar os espíritos dos bons cidadãos: “Os Pais da Igreja não souberam ver o mal que faziam à sua causa difamando assim tudo o que a coragem e a honra haviam produzido de mais grandioso; à força de querer elevar a sublimidade do cristianismo, eles ensinaram os cristãos a se tornarem homens covardes”.
Vale lembrar que o genebrino não foi o primeiro autor a propor uma abordagem desse tipo sobre a virtude. Antes dele, Maquiavel e Montesquieu já tinham feito coisa semelhante. Nas obras do primeiro, o termo virtù é polissêmico e pode ser empregado seja para descrever os predicados de que o príncipe precisa para manter seu poder e garantir a soberania do Estado que ele governa, seja para se referir aos atributos que levam os cidadãos republicanos a conservar o corpo político, os quais estão voltados para a defesa e a exaltação da pátria e da liberdade, inclusive no tocante à disposição para pegar em armas e lutar em nome da república. Em ambos os casos, Maquiavel mostra que essa virtù política não coincide com a virtude moral que, em seu contexto histórico, caracterizava-se principalmente por qualidades cristãs como o amor ao próximo e a mansidão. Montesquieu, por sua vez, havia indicado a virtude como sendo o princípio que mobiliza o governo republicano, tendo sido criticado por aqueles que acreditavam que a virtude também era necessária às monarquias. Em resposta a tais recriminações, ele acrescentou uma advertência ao início d'O Espírito das Leis para esclarecer o conceito de virtude que estava utilizando, o qual significava o amor à pátria e à igualdade: "não é absolutamente uma virtude moral, nem uma virtude cristã, é a virtude política". O autor completa sua explicação afirmando que o homem de bem que possui essa virtude política é aquele que ama as leis de seu país e age movido por esse sentimento, algo sumamente essencial nas repúblicas, e por isso ele não é igual ao homem de bem cristão que pode existir em qualquer espécie de Estado. No Contrato Social (livro 3, capítulo IV), Rousseau recupera o conceito de Montesquieu, lamentando apenas que ele não tivesse percebido que a virtude política é o princípio basilar de todos os Estados bem constituídos, ou seja, onde a autoridade soberana pertence ao povo, mesmo que a forma do governo varie.
Logo, penso que seja viável enxergar a questão das virtudes distintas em Rousseau sem cair em uma interpretação que separe a moral e a política, desde que se perceba adequadamente que as características da moralidade a ser seguida pelos cidadãos de uma república não podem ser idênticas, em todos os pontos, àquela apropriada ao homem em geral, o que conduz aos gêneros díspares de educação apresentados pelo genebrino, cada qual condizente com um tipo de pessoa que se pretende formar.

Um comentário:

  1. Professor Renato, algumas questões me surgem diante do exposto:
    1)A moralidade do homem em geral poderia contradizer à do homem civil, e vice-versa, sem degenerar o homem?
    2)Não seria a moralidade do homem em geral referência para a do homem civil, ainda que distintas, e mesmo não estabelecendo entre si uma relação causa-efeito?
    3) Seria inadequado aplicar a mesma lógica da escala/programa do prof. Milton Meira à relação entre o homem em geral e o civil no que diz respeito à moralidade?
    4)Que tipo de relação podemos estabelecer entre a moral do homem e a do cidadão?
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    Parece-me acertado afirmar que a moralidade do homem em geral fundamenta-se no solo metafísico, enquanto a do homem civil no jurídico; uma é natural e a outra artificial. O ponto nevrálgico estaria justamente em unir o homem tal como é com o homem como deve ser, ou nas palavras de Rousseau no Contrato Social: "Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de administração legítima e segura, tomando os homens como são e as leis como podem ser." (Col. Os pensadores, 1978, p.21). Segundo a nota de Lourival Gomes Machado que se refere à esta citação, para a propositura a ser apresentada no Contrato, parte-se do geral para o particular. A ilegitimidade da desnaturação denunciada por Rousseau poderia ser compreendida através da inversão do desenvolvimento moral que ele propõe desde o Segundo Discurso até o Contrato Social. Seu método é dedutivo, parte dos princípios alavancados do solo metafísico, do homem em geral, para seus desdobramentos no solo existencial, do homem civil, do homem sob à condição de cidadão.

    Renato, ao retomar suas considerações sobre a virtude e a liberdade em sua referência à questão da força, me parece que no homem em geral a determinação das ações humanas são de ordem interior, a moralidade ali constituída é fruto da conjugação da razão com a consciência, enquanto que no homem civil se determina por uma ordem exterior, oriunda da vontade geral. Sob a ótica política, o poder de um que obriga o outro, é escravizante, enquanto que o poder daquele que se obriga a si mesmo é livre. Ora, a fórmula idealizada pelo pacto de associação, de forma genial, se resumirá na alienação total: cada um dando-se a todos e a ninguém se dando; formando imediatamente um corpo coletivo e moral, dotado de vontade própria a reger todos os seus membros contratantes. É válido assinalar que, para Rousseau, da interioridade, do coração do homem e sua sensibilidade, se remete à dimensão metafísica da moralidade, não das vicissitudes individuais, mas do homem em geral. Não se trata aqui simplesmente do embate entre vontade geral e particular, ou entre público e privado, sobretudo, é a condição do homem que acomete Rousseau. Minha hipótese é que não basta a força da soberania popular sustentada por leis que emanam do povo para garantir a administração legítima e segura da ordem civil, sem sombra de dúvida, impõe-se uma moralidade cívica, entretanto, com a importante ressalva de que o artifício não representa nada em si mesmo, pois está arraigado no homem, sua exuberância é tributada da natureza humana, caso contrário, é apenas um "parecer" ilusório que traz à luz a decrepitude da humanidade do homem.

    Está muito claro nesta discussão que a filosofia política de Rousseau não se separa de sua filosofia moral. Resta-nos refletir criticamente no caso de se sustentarem independentes uma da outra. Desta monta, concluo esta pequena consideração propondo que a moralidade cívica que contradiz a moralidade do homem em geral implica na ilegitimidade imputada tanto ao cidadão como ao estado civil. Por conseguinte, entendo que a legitimidade da ordem civil não diz respeito apenas à esfera jurídica, mas também à moralidade cívica, que ao preservar o cidadão, prima pela preservação do homem.

    Renato, que o Emílio não seja o cidadão republicano, me parece plausível, mas penso que ele deve ser, ou fora formado para o ser. O que pensa a respeito?

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