terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Por que Emílio não é o cidadão republicano

Para os pesquisadores da obra de Rousseau, estabelecer relações entre a pedagogia e a política é algo muito comum, uma vez que algumas das principais obras do filósofo versam sobre esses dois campos, tendo ele próprio indicado a existência de ligações necessárias entre eles. Nesse sentido, o tema da educação cívica mostra-se fundamental para o estudo do republicanismo de Rousseau e tem merecido a atenção de diversos trabalhos que se dedicam ao tema da formação do sujeito político na perspectiva do genebrino. No entanto, embora se trate de um tópico bastante explorado, há certas operações analíticas empregadas para abordá-lo que continuam sendo recorrentes apesar de, segundo me parece, repousarem sobre uma opção equivocada. Tal opção reside no uso do Emílio como a fonte das referências mais importantes para o que Rousseau pensava a respeito da formação do cidadão. O que eu pretendo aqui, portanto, é apresentar um conjunto de argumentos para contestar essa escolha tão habitual, elencando algumas ideias que talvez possam ajudar no debate.
A linha de interpretação que vê o projeto educacional do Emílio como um instrumento para a preparação dos cidadãos que devem compor a sociedade civil − tal como ela é concebida no Contrato Social − não é nova. Segundo Jean Starobinski (nota 1), ela remonta a Kant e foi seguida por Cassirer, os quais apontaram a existência de uma "síntese pela educação" que daria sentido às três principais obras de Rousseau, de tal forma que a sociedade imperfeita descrita no Segundo Discurso poderia dar lugar a uma sociedade bem ordenada como aquela definida no Contrato Social, desde que os indivíduos fossem devidamente moldados para ela por meio de um novo tipo de educação, justamente aquele proposto no Emílio. Entretanto, a questão a ser levantada quanto a essa leitura é: será que realmente encontramos evidências que a sustentem nas obras do próprio Rousseau?
Um ponto crucial que tem de ser seriamente considerado logo de início é que os objetivos centrais do Emílio e do Contrato Social não são os mesmos. Nesta última obra, como o autor afirma, sua meta é "Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja, com toda a força comum, a pessoa e os bens de cada associado, e por meio da qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça senão a si mesmo e permaneça assim tão livre quanto antes" (nota 2). Por conseguinte, ele tem em vista discutir quais são as condições de possibilidade da liberdade política, ou seja, da liberdade de que os indivíduos desfrutam quando fazem parte de uma sociedade civil legítima. Rousseau até menciona um outro tipo de liberdade, a moral, como sendo uma espécie de "bônus" que se pode ganhar vivendo na comunidade política. Tal liberdade é a única que torna o homem verdadeiramente senhor de si, "porque o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que prescrevemos a nós mesmos é liberdade” (nota 3). Embora se trate de um tema importante, o autor se limita a apenas tocar brevemente nele, dizendo em seguida: "o sentido filosófico da palavra liberdade não é meu assunto aqui", ou seja, a liberdade moral é algo a ser devidamente abordado em outro lugar que não o Contrato Social.
Esse outro lugar, há bons motivos para acreditá-lo, é o Emílio, pois o objetivo da obra consiste em refletir sobre as condições de possibilidade da educação de um homem preparado para viver em meio a uma sociedade já corrompida sem se deixar macular pelos vícios dela. Emílio não é criado para ser o cidadão típico da república do Contrato Social, como o próprio Rousseau deixa claro no princípio de sua exposição: "Forçado a combater a natureza ou as instituições sociais, é preciso optar entre fazer um homem ou um cidadão, pois não se pode fazer um e o outro ao mesmo tempo. (...) O homem natural é tudo para si: ele é a unidade numérica, o inteiro absoluto que só tem relação consigo mesmo ou com seu semelhante. O homem civil é somente uma unidade fracionária que se apoia no denominador, e cujo valor está em sua relação com o inteiro, que é o corpo social. As boas instituições sociais são aquelas que sabem melhor desnaturar o homem, subtrair sua existência absoluta para lhe dar uma relativa, e transportar o eu para a unidade comum; de modo que cada particular não se considere mais um, mas parte da unidade, e não seja mais sensível exceto no todo. (...) Desses objetivos necessariamente opostos vêm duas formas de instituição contrárias: uma pública e comum, a outra, particular e doméstica" (nota 4). Com uma boa dose de pessimismo − ou de realismo político, alguns diriam −, Rousseau lamenta que "A instituição pública não existe mais e não pode mais existir, pois onde não existe mais pátria, não podem mais existir cidadãos. Essas duas palavras, pátria e cidadão, devem ser apagadas das línguas modernas” (Nota 5). Portanto, Emílio receberá uma educação doméstica cuja finalidade é constituir um homem dotado de liberdade moral, e seu caso é especial porque ele não precisa ser primeiramente cidadão para atingi-la. Na verdade, ele é preparado desde a infância para obter essa liberdade moral mesmo sem participar ativamente de uma associação política.
Tudo isso fica ainda mais evidente quando confrontamos com mais atenção as características das duas “instituições” (formas de educação) apontadas por Rousseau, e então vemos que elas servem para produzir dois tipos muito distintos de pessoas. Por um lado, a educação pública (Nota 6) que deve preparar os cidadãos de um corpo político precisa manter as crianças juntas desde cedo e direcionar suas paixões em favor da pátria para que elas se sintam parte de uma comunidade nacional específica dentro da qual existem interesses comuns que elas carregam consigo. É essa identificação com um povo em particular que permitirá que o conjunto dos cidadãos compartilhe de uma vontade geral cujo núcleo é o bem público. Educados dessa maneira, eles serão "patriotas por inclinação, por paixão, por necessidade. Ao abrir os olhos, uma criança deve ver a pátria e, até a morte, nada mais além dela. Todo verdadeiro republicano suga o amor pela pátria junto com o leite de sua mãe, quer dizer, o amor pelas leis e pela liberdade. Esse amor representa toda a sua existência. Ele vê somente a pátria, vive unicamente para ela. Quando está sozinho, ele é nulo; quando não tem mais uma pátria, ele não existe mais, e se não morreu, é ainda pior" (Nota 7). Por outro lado, desde pequeno Emílio recebe uma educação doméstica separada das outras crianças. Ele é um “selvagem educado para viver em sociedade”, no sentido de que deve ser tão inteiro e autossuficiente quanto for possível. Ele não é levado por seu preceptor a amar sua pátria tal como um cidadão republicano. Em vez disso, ao contrário de mobilizar as paixões do jovem Emílio em direção a uma nação em particular, o preceptor espera até que ele se torne adulto a fim de prepará-lo racionalmente para conhecer os princípios do direito político e usá-los como referência para analisar as características de todos os governos existentes. Desse modo, depois de uma longa viagem por diversos países, Emílio terá critérios objetivos para escolher o local onde deverá viver com sua família. Talvez até se possa dizer que Emílio é educado para ser um cidadão, mas seria muito mais adequado e completo afirmar que ele é educado para viver feliz em qualquer sociedade e cumprir bem os deveres que lhe forem exigidos nela. Assim, se ele vivesse em uma república, seria um bom cidadão e participaria das assembleias populares como membro do soberano; se vivesse em uma monarquia absolutista, seria um bom súdito obediente às leis fixadas pelo rei; até mesmo se fosse reduzido à servidão, seria um bom escravo submisso às ordens de seu senhor (Nota 8).
Para realizar um trabalho pedagógico tão excepcional quanto o que permite a formação de Emílio, é preciso um indivíduo também extraordinário por suas capacidades, uma "alma sublime" nas palavras de Rousseau. As dificuldades para encontrar alguém assim seriam muito grandes, justamente porque para ter as qualidades necessárias à tarefa em questão, o ideal seria que tal pessoa tivesse recebido o mesmo tipo de educação que ministrará a seu jovem pupilo, isto é, como se "o preceptor tivesse sido educado por seu aluno" e os resultados da boa educação pudessem preceder suas causas. Diante desse dilema, Rousseau prefere dizer que ignora se é ou não possível a existência desse sujeito exemplar em uma época marcada pelo envilecimento moral, e simplesmente supõe que tal prodígio foi achado para dar prosseguimento à sua obra. Em seguida, ele acrescenta que o preceptor deveria ser jovem para poder se tornar um companheiro de seu aluno, ao qual ele dedicará mais de duas décadas de cuidados para educá-lo da infância à idade adulta. Isso significa que o trabalho de formar um homem como Emílio é a ocupação profissional exclusiva do preceptor, de modo que ele não terá mais do que um aluno ao longo de sua vida.
Bem diferente é o caso daqueles que devem se incumbir da educação dos membros de uma república. Nas Considerações sobre o governo da Polônia, Rousseau propõe que os responsáveis por essa tarefa também precisam ter determinadas qualidades, entre elas bons costumes, probidade, bom senso e luzes, mas nada que vá muito além do que se espera dos cidadãos em geral. Assim, o mais adequado é que a educação das crianças seja feita sempre por gente do próprio país, e seria até melhor que nem sequer existisse a profissão de pedagogo, já que compete a todos agir, no dia a dia, como se fossem professores de virtude cívica com os quais os jovens têm lições a aprender. No Discurso sobre a economia política, Rousseau já havia escrito que deveria caber ao poder público, e não aos pais, realizar a educação cívica, embora isso não retire deles a ascendência sobre os filhos. Em conjunto, como cidadãos, os pais continuariam tendo autoridade sobre as crianças na medida em que lhes falassem em nome das leis, e não mais em nome da natureza. Aqui é válido lembrar a ideia de Rousseau segundo a qual a entrada no corpo político implica a desnaturação dos indivíduos para ocorrer de modo adequado, inclusive em se tratando da maneira como eles precisam ser educados, isto é, coletivamente, como partes interdependentes de um todo maior. Não é por outra razão que o autor define a educação pública, sob regras prescritas pelo Estado e conduzida por magistrados escolhidos pelo soberano, como uma das máximas fundamentais de todo governo popular ou legítimo: "Se as crianças são educadas em comum no seio da igualdade, se elas são imbuídas das leis do Estado e das máximas da vontade geral, se elas são instruídas a respeitá-las acima de todas as coisas, se elas são cercadas de exemplos e de objetos que lhes falam sem cessar da mãe terna que os alimenta, do amor que tem por elas, dos bens inestimáveis que recebem dela, e do retorno que lhe devem, não duvidemos de que elas aprendam assim a se gostar mutuamente como irmãos, a querer sempre aquilo que a sociedade quer, a substituir a estéril e vã tagarelice dos sofistas por ações de homens e de cidadãos, a se tornar, um dia, os defensores e os pais da pátria, da qual eles foram, por tanto tempo, as crianças". (Nota 9) A leitura dessas recomendações sobre a educação cívica mostra que ela implica uma abordagem pedagógica muito díspar daquela contida no Emílio. Por seus respectivos objetivos, métodos e executores, esses dois processos de formação não podem ser confundidos sem que se cometa uma série de equívocos.
Outros elementos que reforçam essa compreensão das propostas de Rousseau podem ser encontrados no final do Emílio, no momento em que o autor mostra quais seriam os resultados da educação política de seu aluno hipotético. Se compararmos o que é dito nesse ponto com o que aparece já no início da obra, vemos que há uma complementaridade bastante clara. Perguntado sobre o que havia aprendido em suas viagens, Emílio responde que suas observações reforçaram nele as lições que vinha recebendo de seu preceptor desde a infância, de acordo com as quais a submissão à necessidade é um fardo a ser suportado por todos os homens sem reclamações, visto que ela não é danosa à liberdade: "Quanto mais eu examino a obra dos homens em suas instituições, mais vejo que à força de quererem ser independentes, eles se tornam escravos, e que usam sua liberdade em vãos esforços para assegurá-la. Para não ceder à torrente das coisas, criam para si mil ligações; depois, tão logo querem dar um passo, não conseguem e ficam espantados de estarem presos a tudo. Parece-me que para nos tornarmos livres não precisamos fazer nada; basta não querermos deixar de sê-lo. Sois vós, meu mestre, que me haveis feito livre ao me ensinar a ceder à necessidade. Que ela venha quando lhe aprouver, eu me deixo levar sem constrangimento" (Nota 10). Na sequência, as declarações feitas pelo jovem demonstram a total falta de apego por sua terra de origem ou por qualquer outra, algo que seria inadmissível em um cidadão republicano que tivesse sido educado para amar sua pátria: "Rico ou pobre, eu serei livre. Não o serei somente em um determinado lugar, eu o serei em toda a terra. Para mim todas as correntes da opinião estão quebradas; só conheço as da necessidade. Aprendi a carregá-las desde meu nascimento e as carregarei até a morte, pois sou homem. E por que não as conseguiria carregar sendo livre, uma vez que sendo escravo seria preciso carregá-las da mesma forma, e com as da escravidão por acréscimo? (...) Que me importa minha condição sobre a terra? Que me importa onde estou? Em toda a parte onde há homens, eu estou entre meus irmãos" (Nota 11).
Como é perceptível, há diferenças importantes entre a virtude moral que Emílio é ensinado a cultivar e a virtude cívica que se espera dos membros de uma república. A virtude de Emílio leva-o a tratar todas as outras pessoas como suas iguais, a respeitá-las e estimá-las como indivíduos pertencentes ao gênero humano tal como ele, independente de suas origens nacionais ou de seus laços políticos. A virtude cívica, por outro lado, leva o sujeito a considerar como seus iguais apenas aquelas pessoas que compõem a república junto com ele. É a essas pessoas, seus compatriotas, que ele dirige sua estima. Quanto às outras, não passam de estranhas a quem ele não deve nada (Nota 12).
Essa diferenciação entre as virtudes mais apropriadas ao cidadão e ao homem em geral também pode ser vista na análise feita por Rousseau no Contrato Social acerca dos diferentes tipos de religião. Quando o filósofo fala do cristianismo primitivo, ou seja, daquele que considera mais próximo da pureza do Evangelho, ele propõe que por meio dessa religião "santa, sublime, verdadeira, os homens, filhos do mesmo Deus, reconhecem-se todos como irmãos, e a sociedade que os une não se dissolve nem mesmo na morte" (Nota 13). Todavia, tal religião também tem seus inconvenientes do ponto de vista dos requisitos necessários para garantir a conservação do Estado, pois "não tendo nenhuma relação particular com o corpo político, ela deixa para as leis apenas a força que elas retiram de si mesmas, sem lhes acrescentar nenhuma outra, e dessa forma um dos grandes laços da sociedade particular fica sem efeito. Mais ainda, longe de ligar os corações dos cidadãos ao Estado, ela os desliga dele assim como de todas as coisas da Terra. Eu não conheço nada de mais contrário ao espírito social" (Nota 14). Logo, o que Rousseau pretende é que uma república, por ser uma associação particular em meio à humanidade como um todo, precisa de certos elementos específicos que reforcem sua identidade e coesão, algo que o cristianismo não pode fornecer, pois suas virtudes são as melhores para o amplo reino espiritual e sem fronteiras constituído pelo gênero humano, mas se tornam péssimas para os cidadãos que devem amar fervorosamente sua pátria terrena e estar dispostos a sacrificar sua própria vida para defendê-la.
Voltando ao Emílio, na réplica às palavras de seu pupilo, o preceptor reitera aquilo que havia sido posto por Rousseau inicialmente acerca das condições políticas de sua época. Por que ele teria preparado seu aluno para viver em um Estado legítimo onde se desfrutaria da liberdade civil, se isso já não é mais possível? Afinal, "É em vão que aspiramos à liberdade sob a salvaguarda das leis. Leis! Onde é que elas existem, e onde é que são respeitadas? Em toda a parte viste reinar sob esse nome apenas o interesse particular e as paixões dos homens. Mas as leis eternas da natureza e da ordem existem. Elas assumem o lugar da lei positiva para o sábio, estão escritas no fundo de seu coração por meio da consciência e da razão. É a elas que devemos servir para sermos livres, e não há escravo além daquele que age mal, pois ele o faz sempre a despeito de si mesmo. A liberdade não está em nenhuma forma de governo, ela está no coração do homem livre; ele a leva a toda parte consigo. O homem vil leva a servidão a toda parte. Um seria escravo em Genebra e o outro, livre em Paris" (Nota 15). A Emílio resta cultivar uma liberdade moral que ele pode exercer em qualquer lugar, mesmo sob a opressão política do despotismo. Vale a pena lembrar que o jovem optou por constituir sua família na França, sob o governo da monarquia absolutista que Rousseau tanto havia criticado, pois já que não havia liberdade política a ser buscada em parte alguma, era melhor continuar vivendo onde se nasceu.
Entretanto, da constatação de que Emílio não terá a liberdade civil própria de uma república, seria correto deduzir que ele estará isento de quaisquer deveres para com a comunidade da qual fará parte? Diante desse problema o preceptor é bastante enfático em suas recomendações quanto à necessidade de se reconhecer os benefícios que se recebeu ao viver em um determinado corpo político, ainda que ele esteja longe de oferecer a seus membros as condições de uma sociedade bem ordenada: "Se eu te falasse dos deveres do cidadão, tu me perguntarias, talvez, onde está a pátria, e acreditarias me haver confundido. Porém, tu te enganarias, caro Emílio; pois um homem que não tem uma pátria tem ao menos um país. Há sempre um governo e simulacros de leis sob as quais ele viveu tranquilo. Que o contrato social não tenha sido observado, o que importa, se o interesse particular o protegeu como a vontade geral teria feito, se a violência pública o defendeu das violências particulares, se o mal que ele viu ser cometido fez com que amasse o que era bom, e se nossas instituições mesmas fizeram-no conhecer e odiar as próprias iniquidades delas? Oh, Emílio, onde está o homem de bem que não deve nada a seu país? Qualquer que seja, ele lhe deve o que há de mais precioso para o homem, a moralidade de suas ações e o amor pela virtude" (Nota 16). Desse modo, muito embora a possibilidade da liberdade política tenha se perdido, ainda resta o caminho da liberdade moral a ser percorrido em qualquer lugar onde se viva. Mesmo em meio à corrupção, um indivíduo bem direcionado como Emílio é capaz de manter um comportamento virtuoso opondo-se aos maus costumes que vigoram entre as demais pessoas. O sábio é aquele que observa o "simulacro das leis", que as outras pessoas obedecem ou não de acordo com suas conveniências, e retira dele algo de bom para ser acatado (Nota 17). Ao passo que seus "concidadãos" usam o bem público como pretexto para buscar suas vontades particulares, o homem virtuoso aprende a conhecer e a amar a ordem para além de suas meras aparências, a sacrificar de bom grado seu interesse pessoal ao interesse comum quando necessário. As leis sob as quais ele vive, a despeito de não terem emanado da vontade geral de um povo soberano, dão-lhe a coragem de ser justo mesmo entre os maus. "Não é verdade", completa o preceptor, "que elas não o tornaram livre, elas o ensinaram a reinar sobre si mesmo" (Nota 18). Entretanto, não é demais repetir que essa liberdade é de cunho moral e não político (Nota 19).
Por ter recebido da sociedade, malgrado todos os vícios que possam nela existir, a oportunidade de se tornar virtuoso, Emílio possuiria uma dívida eterna de gratidão para com ela. E mais ainda. O preceptor lembra que desde a infância o jovem vinha sendo protegido por seus compatriotas e que, portanto, ele deveria amá-los e cumprir seus deveres junto deles, sendo-lhes tão útil quanto possível, inclusive servindo-lhes de exemplo de boa conduta a ser imitado. Porém, seria melhor que ele morasse no campo com sua família, a fim de se afastar dos males típicos das grandes cidades. Sonhando com a vida que o jovem casal viria a ter, o preceptor idealiza seu lar como o centro de uma utopia bucólica: "Eu aguardo pensando o quanto, de seu simples retiro, Emílio e Sofia podem espalhar benefícios em torno de si, o quanto podem vivificar o campo e reanimar o zelo extinto do aldeão infortunado. Eu creio ver o povo se multiplicar, os campos se fertilizarem, a terra tomar uma nova cobertura, a multidão e a abundância transformarem os trabalhos em festas, os brados de alegria e de bendições se elevarem em meio aos jogos rústicos em torno do casal amável que os reanimou. Tratam a idade de ouro como uma quimera, e ela sempre será isso para todos que tenham o coração e os gostos corrompidos. Nem sequer é verdade que ela seja lastimada, pois essas lástimas são sempre vãs. O que seria preciso, portanto, para fazê-la renascer? Uma só coisa, mas impossível: seria amá-la. (...) Ela parece já renascer em torno da morada de Sofia" (Nota 20). Tendo esse quadro em mente, percebe-se que o projeto educacional que embasou a formação de Emílio não pretende ser a fundação de uma república. No máximo, seu núcleo familiar poderia ser o ponto de partida para uma comunidade camponesa moralmente mais elevada, mas seria ir muito longe presumir que isso bastaria para criar um corpo político legítimo de acordo com os padrões do Contrato Social.
Igualmente, seria presumir demais afirmar que, pelo fato de produzir um indivíduo de elevada virtude capaz de honrar os compromissos por ele assumidos, o modelo pedagógico de Emílio seria o mais apropriado para formar os cidadãos que devem respeitar o pacto social ao qual aderiram. É verdade que Rousseau considera decisivo para o sucesso da associação política que os membros do Estado estejam sinceramente imbuídos do desejo de respeitar o vínculo que os une. Para tanto, eles precisam se sentir moralmente obrigados a obedecer às leis, não apenas porque têm medo das punições que sofreriam se as violassem, mas principalmente porque elas estão gravadas em seus corações, como o filósofo diz no Contrato Social. Entretanto, para atingir o objetivo de incutir nos cidadãos esse tipo de moralidade, com certeza não é necessário que recebam uma educação nos moldes daquela ministrada a Emílio. Esses filhos da república não carecem de um preceptor como o dele, e sim de um Legislador cujo trabalho é o de promover os bons costumes por meio dos quais ele forja a chave inquebrantável do Estado, instilando nos indivíduos uma reverência sagrada pelas leis que propiciam sua liberdade. Caso um povo receba em sua juventude a orientação correta e adquira os costumes apropriados para dar força ao pacto social, os poderosos laços que unem seus membros perdurarão por muito tempo e serão o mais confiável alicerce do Estado. Nascidos e criados em meio a seus compatriotas, eles ficarão imersos a partir da infância nas tradições, costumes e valores morais próprios de seu país, de maneira que suas vontades particulares estarão em harmonia com a vontade geral da nação.
Enfim, se Emílio é educado para examinar livremente todas as coisas, dos fenômenos da natureza aos preceitos religiosos e às regras morais, devendo conhecer o bem por meio da razão e amá-lo graças à consciência, Rousseau mostra que o cidadão comum da república não precisa de um exercício intelectual tão aprimorado para saber zelar por seus direitos e deveres. Para ver isso, basta lembrar o que é dito no Contrato Social sobre o Legislador, isto é, que ele não convence os indivíduos, por meio de argumentos racionais, sobre a validade e a correção das leis que propõe, mas sim os persuade disso graças a um engodo, fazendo-se passar por um porta-voz dos deuses (Nota 21). Ao longo das gerações seguintes, os cidadãos devem fazer o possível para conservar essas instituições originais, uma tarefa para a qual Rousseau indica um instrumento que também não apela para a racionalidade, ou seja, a sacralização do pacto social e das leis, tal como estabelecido nos preceitos da profissão de fé civil (Nota 22). Para se manter vivo e saudável, o corpo político republicano demanda patriotas que o sustentem, e o patriotismo não consiste em ser uma ideia que as pessoas aceitam racionalmente por terem compreendido, mediante uma exposição lógica, as várias vantagens que elas podem obter se resolverem integrar o pacto social de um determinado povo. Acima de tudo, o patriotismo é um sentimento a ser nutrido desde cedo no coração de todos os cidadãos, uma paixão que os leva a amar sua terra natal mais do que qualquer outro lugar no mundo, a amar as leis sob as quais vivem em segurança nela, a amar a liberdade que elas lhes asseguram, bem como as pessoas com as quais compartilham essa terra, essas leis e essa liberdade.

Renato Moscateli

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Notas

1) Ver A transparência e o obstáculo, capítulo 2.
2) Contrato Social, livro 1, capítulo VI.
3) Contrato Social, livro 1, capítulo VIII.
4) Emílio, livro 1.
5) Emílio, livro 1. Conforme indica Luis Roberto Salinas Fortes, o projeto educacional delineado no Emílio situa-se em circunstâncias bem distintas daquelas nas quais é viável fundar uma república e formar seus cidadãos: “Ao termo inicial, quando a instituição de um corpo político quase perfeito ainda é possível, corresponde a ação do Legislador propriamente dito, de Licurgo, Moisés, Numa. Ao termo final, quando já nada mais é possível fazer, corresponde a ação do Pedagogo” (Salinas Fortes, 1976, p. 123). Em outras palavras, quando Rousseau dedica-se aos experimentos intelectuais que envolvem a educação de seu aluno imaginário, ele toma como referência um contexto no qual a opção que resta é salvar um indivíduo, e não mais todo um povo, dos maus efeitos que a socialização descontrolada sempre acarretam.
6) Descrita pelo filósofo principalmente no Discurso sobre a economia política e nas Considerações sobre o governo da Polônia.
7) Considerações sobre o governo da Polônia, capítulo 4.
8) Tal como se vê na continuação inacabada do Emílio, o texto Emílio e Sofia ou os Solitários.
9) Discurso sobre a economia política.
10) Emílio, livro 5.
11) Emílio, livro 5.
12) Ver o livro 1 do Emílio: “Toda sociedade parcial, quando é estreita e bem unida, aliena-se da grande. Todo patriota é duro para com os estrangeiros; eles são apenas homens, não são nada a seus olhos. Esse inconveniente é inevitável, mas é pequeno. O essencial é ser bom para as pessoas com quem se vive. No exterior, o espartano era ambicioso, avaro, iníquo; mas o desprendimento, a equidade, a concórdia reinavam em seus muros. Desconfiai desses cosmopolitas que vão buscar ao longe, em seus livros, deveres que desdenham cumprir em torno de si. Tal filósofo ama os tártaros para ser dispensado de amar seus vizinhos.”
13) Contrato Social, livro 1, capítulo VIII.
14) Contrato Social, livro 1, capítulo VIII.
15) Emílio, livro 5.
16) Emílio, livro 5.
17) Assim, até mesmo sob os grilhões da escravidão, o sábio pode continuar a ser moralmente livre. Em Emílio e Sofia ou Os Solitários, depois de ter sido capturado por traficantes de escravos durante uma viagem marítima, Emílio é reduzido à servidão, mas nem por isso considera que tenha verdadeiramente perdido sua liberdade. Ele diz que em seu novo estado continua sendo tão sujeito quanto antes aos mesmos fardos que os homens em geral têm de suportar, tais como a necessidade, o trabalho, a fome, a dor, a coerção e a influência das paixões humanas. Por tudo isso, ele escreve a seu antigo preceptor para dizer que estava convencido de que sua mudança de condição era mais aparente do que real, dado que "se a liberdade consistisse em fazer o que se quer, nenhum homem seria livre; (...) todos são frágeis, dependentes das coisas, da dura necessidade; (...) quem deseja melhor tudo o que ela ordena é o mais livre, pois nunca é forçado a fazer o que não quer. (...) Sim, meu pai, posso dizê-lo: o tempo de minha servidão foi o de meu reinado, e jamais tive tanta autoridade sobre mim do que quando carreguei os ferros dos bárbaros. Submetido às paixões deles sem partilhá-las, aprendi a conhecer melhor as minhas. Os desvios deles foram para mim instruções mais vivas do que haviam sido vossas lições, e fiz sob esses rudes mestres um curso de filosofia ainda mais útil do que aquele que fiz convosco."
18) Emílio, livro 5.
19) Tanto é assim que Emílio jamais chega a ser um cidadão tal como Rousseau o define no Contrato Social, isto é, um membro do soberano, e ele não se queixa disso. O rapaz vive como súdito da monarquia francesa até alguns anos depois de seu casamento e, como se vê na obra que continua sua história, abandona o reino após os infortúnios que atingem sua família. Refletindo sobre sua decisão, ele escreve ao antigo preceptor: "eis o que eu me dizia ao deixar minha pátria, da qual tinha de me envergonhar e à qual devia somente o desprezo e o ódio, pois sendo feliz e digno de honra por mim mesmo, eu só retinha dela e de seus vis habitantes os males dos quais fui a vítima e o opróbrio em que fui mergulhado. Rompendo os nós que me ligavam a meu país, eu o estendi sobre toda a terra, e me tornava mais homem na medida em que deixava de ser cidadão." Certamente, esses não são os pensamentos de um verdadeiro cidadão patriota!
20) Emílio, livro 5.
21) Ver o Contrato Social, livro 2, capítulo VII.
22) Ver o Contrato Social, livro 4, capítulo VIII.
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Referências

ROUSSEAU, J.-J. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 1959-1995. 5 volumes.
Salinas Fortes, Luiz Roberto. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo: Ática, 1976.
Starobinski, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. Trad. Maria L. Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.