terça-feira, 30 de agosto de 2011

Rousseau e o problema do “limiar-epocal” dos conceitos políticos

No artigo intitulado História conceitual como filosofia política, o professor italiano Giuseppe Duso baseia-se nas ideias de Reinhart Koselleck e Otto Brunner para realizar uma discussão acerca das propostas da chamada História Conceitual (Begriffsgeschichte). Entre os vários tópicos abordados pelo autor, um dos mais importantes é o que ele chama de Sattelzeit (limiar-epocal), isto é, o período histórico em que acontece a mudança radical de significado entre os conceitos políticos antigos e os modernos.
De acordo com Duso, “Koselleck tem razão em colocar a Sattelzeit, para a época moderna, na segunda metade do século XVIII (período também indicado por Brunner), caso se refira à difusão dos conceitos na vida social, cultural e política. Todavia, se olharmos para a gênese destes conceitos (...), podemos concluir que a Trennung em relação a um milenar modo de entender o mundo, o homem e a política nasce antes da segunda metade do século XVIII. Todos os conceitos que se difundem no final desse século e que se tornam comuns, encontram-se já elaborados e determinados na nova ciência política de Hobbes, a partir da metade do século XVII. É neste contexto que o âmbito temático da antiga política (o bem viver, o bom governo e a virtude necessária para isto) − quando se perde um mundo objetivo que serve de orientação − acaba sendo substituído pela problemática da ordem, de uma ordem a ser construída, porque na realidade não existe, e pela nova ciência que rigorosamente pode alcançar este objetivo: o direito natural. (...) a nova maneira de entender o problema da convivência entre os homens − uma convivência que só é possível mediante um poder criado e desejado por todos − é o argumento principal da nova ciência do direito natural.” (p. 56-57)
Nesse sentido, o professor italiano argumenta que “Com Hobbes, temos explicitamente a tentativa de anular a maneira de pensar a política característica da antiga ciência prática: esta é considerada como desprovida de rigor científico e, por isso, insuficiente para alcançar a finalidade da vida comum dos homens, isto é, aquela autoconservação dos indivíduos que só é possível mediante a paz. A anulação do pensamento da filosofia prática é acompanhada pela negação do papel que a experiência ocupava no modo antigo de pensar a política. A realidade das associações humanas não é mais significativa, uma vez que estas últimas são consideradas como irregulares e injustas. É o estado de natureza, entendido não como estado originário, mas como situação em que o homem se encontraria fora da sociedade, que constitui o estratagema teórico útil a esta operação. Com isso vem a se criar um espaço livre, uma tabula rasa, sobre a qual a nova ciência, que se inspira no rigor geométrico, pode traçar suas linhas para garantir finalmente paz e ordem entre os homens.” (p. 58)
Assim, Hobbes teria se afastado da concepção aristotélica, presente na Política, de que haveria uma diferença entre os homens, pela qual alguns são aptos para governar e outros para serem governados. Contra isso “se move a nona lei de natureza, que retoma um elemento fundamental da antropologia hobbesiana, basilar para a ciência política: ‘cada um deve reconhecer o outro como igual a si mesmo por natureza’. O princípio da igualdade entre os homens, que implica considerá-los não em relação ao seu diferente status, mas todos como indivíduos, está na raiz desta construção e determina o novo princípio organizador a partir do qual se deve entender a vida comum dos homens e, portanto, da sociedade. Sobre o fundamento da igualdade dos indivíduos, e apenas sobre isto, é possível uma construção teórica que conduz ao conceito moderno de soberania com o caráter absoluto que comporta: e isto não acontece apenas com Rousseau, mas já antes, no pensamento político de Hobbes.” (p. 58-59)
“Para delinear esquematicamente os elementos desta nova maneira de entender a política”, prossegue Duso, “temos que acrescentar alguns elementos essenciais. Se o ‘estado de natureza’ é imaginado como uma situação não social do homem e, portanto, como um mundo de indivíduos iguais, pensa-se ao mesmo tempo um conceito novo, o de liberdade. Esta não tem nada mais a ver com o modo antigo de pensar as diversas libertates, mas – a partir da noção de indivíduo igual e da concepção mecanicista do homem −, a liberdade é pensada como falta de obstáculos em relação à ‘exteriorização’, por parte de cada um, da própria força e do próprio engenho − do próprio poder − e consequentemente como dependência de cada um exclusivamente da própria vontade. Igualdade e liberdade, enquanto independência, estão por isso nos alicerces da construção daquela sociedade civil que deve impedir a guerra recíproca e garantir a ordem e a paz: elas substituem a antiga idéia de justiça que, desde Platão, estava no centro da reflexão política.” (p. 59)
Perto da conclusão do artigo, Duso propõe: “podemos afirmar que, como na filosofia aristotélica (mas em sentido mais amplo e em alguns aspectos se pode dizer da filosofia grega) podemos rastrear o princípio organizador que reconduz à unidade, durante um período de tempo muito longo, as diferentes doutrinas e que confere um significado aos termos utilizados para a esfera prática, assim como no jusnaturalismo moderno e, in primis na construção política de Hobbes, podemos encontrar um princípio organizador e um horizonte total de compreensão, somente em relação ao qual os novos conceitos políticos assumem um determinado significado.” (p. 62-63) Desse modo, Duso enfatiza uma diferença capital entre o significado da política moderna e o modo de entender a política do mundo precedente, pois o autor do Leviatã teria levado a uma ruptura radical com um universo intelectual fundado sobre a noção de justiça e sobre o problema da virtude, no qual havia lugar para o problema do “bom governo”.
Ao ler o artigo do professor italiano, lembrei-me de algumas ideias expostas por Leo Strauss em What is political philosophy? Nesse texto, o autor afirma que existe uma solução “clássica” para o problema da filosofia política que remonta aos pensadores da Antiguidade, tais como Platão e Aristóteles, de acordo com a qual “o objetivo da vida política é a virtude, e a ordem mais adequada para conduzir à virtude é a república aristocrática, ou ainda o regime misto.” (p. 39) Além dessa solução, há também outras que foram dadas pela filosofia política moderna, cujo fundador seria Maquiavel. Para Strauss, Hobbes, Locke e Rousseau estavam entre os que seguiram a trilha aberta pelo escritor florentino, e todos os três teriam compartilhado um mesmo ponto de partida, a saber, a rejeição do esquema clássico da política como sendo não-realista, pois compreendiam que a raiz da sociedade civil encontrava-se no direito de autopreservação. Entretanto, apesar da proximidade com os dois autores ingleses, Rousseau teria feito parte, ainda segundo Strauss, de uma “segunda onda” na modernidade, caracterizada por um retorno aos modos pré-modernos de pensamento: “Rousseau voltou do mundo das finanças, que ele foi o primeiro a chamar de mundo do bourgeois, para o mundo da virtude e da cidade, o mundo do citoyen. (...) Todavia, ele interpretou a cidade clássica à luz do esquema de Hobbes” (p. 52).
Diante das teses de Duso e de Strauss, eu gostaria de levantar algumas questões. Dado que Rousseau utilizou diversos tópicos do modelo hobbesiano para construir seu próprio pensamento político (estado de natureza, pacto social, soberania absoluta etc.), mas ao mesmo tempo buscou recuperar elementos da Antiguidade para inseri-los nele − entre os quais estava a virtude cívica como requisito indispensável para qualquer república bem ordenada −, como poderíamos situá-lo em relação ao “limiar-epocal” apresentado por Duso? A realização daquele “retorno aos modos pré-modernos de pensamento” apontado por Strauss seria uma característica da obra rousseauniana que colocaria um problema para a tese do “limiar-epocal”? Ou então a obra de Rousseau, mesmo recorrendo a certas noções do modo antigo de se pensar a política, continuou seguindo essencialmente o “princípio organizador” configurado em primeiro lugar nos textos de Hobbes?
Convido os colegas a darem suas respostas a essas questões e também a outras relacionadas que considerarem pertinentes. Para isso, basta clicar no link Comentários logo abaixo da postagem e inserir seu texto.

Renato Moscateli

Referências
Duso, Giuseppe. Historia conceptual como filosofía política. Res publica, n. 1, p. 37-71, 1998. Disponível em: http://revistas.um.es/respublica/article/view/25721/24961
Strauss, Leo. An introduction to political philosophy: ten essays by Leo Strauss. Detroit: Wayne State University Press, 1989.

Um comentário:

  1. Renato, excelente tema de discussão, ao qual eu gostaria de oferecer uma breve contribuição. Em uma de minhas primeiras apresentações sobre Rousseau, em 2001, intitulada "Antimoderno ou ultramoderno? A crítica de Rousseau ao liberalismo" eu investiguei essa questão e concluí que Rousseau é efetivamente um moderno, na medida em que, como vc nota, ele recusa não só a tese da desigualdade entre os homens (base da teoria política antiga), mas também a ideia de que a sociedade é um fato da natureza e que sua formação obedeceria a um telos posto por essa mesma natureza. As teses hobbesianas estão na base de seu pensamento político, e Rousseau, portanto, não pode ser um proponente de um retorno a uma concepção pré-moderna da política.

    No entanto, eu identifiquei um elemento adicional que distingue Rousseau dos modernos "otimistas" como Hobbes, Locke, Stuart Mill e mesmo Marx e Engels, a saber, a profunda desconfiança frente ao progresso técnico e os ideais liberais e iluministas, e a certeza de que o mundo moderno é moralmente decadente em relação ao antigo e fadado à degeneração (como, infelizmente, parece-me que se constata dia a dia...). Ou seja, Rousseau introduziu na modernidade a percepção desse desconforto e desconfiança em relação ao "mundo moderno" e, nesse sentido, como vc bem nota, ele pertence a uma "segunda onda" da modernidade, na acepção de Leo Strauss, e é, propriamente o primeiro crítico dessa modernidade (o segundo será Nietzsche).

    A questão, então, é se um crítico da modernidade pode ser chamado de um moderno, e minha percepção é que pode, já que, paradoxalmente, a crítica da modernidade veio a tornar-se um elemento constitutivo da própria modernidade (em contraste com a apatia acrítica do assim chamado "pós-modernismo") e da cultura de massas.

    A melhor formulação que encontrei para classificar Rousseau - e que adoto sem hesitação - é que ele é um "antimoderno" no sentido proposto por Antoine Compagnon, com o que não se designa um adversário sistemático do progresso ou da modernidade, mas um adversário do que estes trazem de decadência mortal: aquele "qui puisse dire 'nous modernes' tout en dénonçant le moderne." (Les antimodernes, de Joseph de Maistre à Roland Barthes).

    José Oscar de Almeida Marques

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