segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Comentário sobre "Rousseau e o problema do 'limiar-epocal' dos conceitos políticos"

     As questões interessantes propostas pelo Renato e a contribuição, sempre pertinente, do professor José Oscar me remeteram diretamente aos primeiros estudos que realizei sobre Rousseau. Lembrei-me das dificuldades que enfrentei enquanto buscava evidenciar um núcleo antigo no pensamento político de J.-Jacques Rousseau, um filósofo moderno. Penso que deve ser levada em conta uma peculiaridade do nosso autor, bem lembrada por Bruno Bernardi (2006), que é a de “constituir suas orientações essenciais remanejando, deslocando, transformando os conceitos que ele recebe das tradições teóricas que confronta”. Rousseau forma, desse modo, conceitos próprios ao seu horizonte de pensamento, o que acaba por dificultar todas as tentativas de enquadrá-lo.
     É evidente que sendo um homem do seu tempo, Rousseau não se furtou às influências da revolução metodológica dos séculos XVI e XVII. Nas esferas social e política a Modernidade seria testemunha de empreitadas ambiciosas, cujo objetivo era alcançar, nestes domínios, o que Copérnico, Galileu e Newton tinham conseguido na esfera dos fenômenos físicos. Hobbes foi, sem dúvida, um exemplo desse esforço, em que o domínio da natureza física incluiria o domínio da natureza humana. Esta nova visão mecanicista de natureza da modernidade viria substituir a visão pré-moderna dominante, derivada de uma perspectiva que pode ser chamada de aristotelismo cristão, que abrangia a vida humana, inclusive as faculdades superiores da alma, e era orientada para um télos.
    O curioso é que nesse campo de batalha filosófico, tanto parece ser possível situar Rousseau em ambos os lados da clivagem, quanto constatar o seu surpreendentemente original entendimento da relação homem/natureza/história. Embora ele tenha certas afinidades pronunciadas com os antigos, e apesar do seu entendimento da natureza, em seu sentido puro, ser decididamente moderno, suas visões tanto das possibilidades humanas naturais, quanto dos meios de atualizá-las, são bastante distintas. Laurence Cooper em Rousseau, Nature and the problem of the good life (1999), faz uma análise interessante dessa posição intermediária de Rousseau. Segundo Cooper, Rousseau aceita, em parte, o “truncamento moderno da natureza”, que elimina ou, pelo menos, relega para o reino do supranatural tudo aquilo que não pode ser submetido a critérios de cientificidade. Entretanto, Rousseau mantém a naturalidade do que ele entende serem as faculdades superiores ou, nos termos de Cooper, a “naturalidade do sublime”. Rousseau tanto estende quanto repudia a tendência moderna, diz Cooper, ele a estende ao negar a naturalidade de qualquer coisa que não exista no puro estado de natureza: o homem nesse estado é pré-racional e pré-moral, é praticamente destituído de tudo o que a maioria de nós reconhecemos como distintamente humano. Por outro lado, ele a repudia ao apresentar figuras como o Emílio ou o solitário Jean-Jacques como exemplares genuínos do homem natural vivendo em sociedade. Nisso ele parece estar sustentando, com os pré-modernos, uma concepção mais inclusiva e menos mecanicista de natureza. De acordo com Cooper, Rousseau é capaz de mover-se nessas duas direções simultaneamente porque “ele sustenta uma concepção de natureza que engloba duas partes: o que é natural no estado selvagem e o que é natural no estado civil” (p. 73). Rousseau consegue fazer isso muito bem, acentua Cooper, porque as duas partes se encaixam de forma coerente. De fato, a genialidade da visão de Rousseau reside, precisamente, na integração que ele faz dessas duas partes.
     Com o fim de representar a posição aparentemente intermediária de Rousseau entre as concepções de natureza pré-moderna (aristotelismo cristianizado) e dos primeiros modernos (baconiana, hobbesiana), Cooper emprega uma analogia geométrica bem interessante. Veja-se o esquema:


     A concepção pré-moderna de natureza pode ser convenientemente representada como uma pirâmide ou um triângulo equilátero, cujo topo representa as faculdades humanas superiores. O uso adequado dessas faculdades constitui a mais alta realização da natureza. A moderna concepção de natureza, nesse sentido, seria mais precisamente retratada como uma pirâmide truncada ou uma forma trapezóide. O que na visão aristotélico-cristã consistia o topo, agora tem seu status natural negado; a espiritualidade, se sua existência foi concedida, é removida para o reino do supranatural. De acordo com esse esquema geométrico, a concepção de Rousseau torna-se mais complexa: ela é representada como um trapézio, que é ainda mais squat (encurtado) ou truncado do que o dos primeiros modernos. Porém, sobre ele repousa um triângulo desenhado em linhas seccionadas, um triângulo que, combinado com o trapézio, constitui uma pirâmide. Segundo Cooper, as linhas sólidas abrangem o que é natural no estado selvagem, as linhas seccionadas, o que é natural no estado civil. Cooper entende que a representação por linhas seccionadas do que é natural no estado civil, é bastante apropriado pelo menos por duas razões: em primeiro lugar, o que é natural no estado civil é secundário à natureza original, é fruto do desenvolvimento histórico. Mais até do que isso, o que é natural no estado civil é logicamente secundário, pois para que as mais altas capacidades humanas cumpram os critérios de naturalidade em qualquer sentido, elas devem preservar a harmonia da natureza em seu sentido primário, e para que este seja o caso, a direção do desenvolvimento destas faculdades superiores deve, na prática, ser contínua ou projetada a partir do que é natural no estado de natureza.
   Entretanto, é preciso prudência, a analogia geométrica expressa afinidades e não semelhanças. O que estaria, por exemplo, no topo da pirâmide segundo a visão de Rousseau, não coincide com a visão pré-moderna, ou seja, para Rousseau seria o sentimento de existência, sua ampliação mediante o desenvolvimento das faculdades que estendem e aprofundam o amor de si. Em suma, o que na visão pré-moderna seria definido como realização intelectual, para Rousseau seria realização do sentimento.

Marisa Vento

Referências
BERNARDI, Bruno. La Fabrique des concepts – Recherches sur l’invention conceptuelle chez Rousseau. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2006.
COOPER, Laurence, D. Rousseau, Nature, and the problem of the good life. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 1999.

Nenhum comentário:

Postar um comentário